MEMÓRIA PORTUGUESA NO MUNDO
Hoje transcrevo do Jornal de Letras, um texto de G. Oliveira Martins. Homenagem a um grande português e um grande amigo.
Rio de Janeiro, 29 de Junho de 2013
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António Pinto da França (1935~2013)
Posso dizer sem receio de exagero que António Pinto da França (APF) foi um dos melhores cultores da memória portuguesa no mundo. Francisco Seixas da Costa também não teve dúvidas. É uma perda irreparável. Inesperadamente deixou-nos, num desses acidentes domésticos que tornam perigosas as nossas casas, por mais acolhedoras que sejam.
E a verdade é que as casas deste embaixador de excepção sempre foram muito acolhedoras, graças às qualidades hospitaleiras de Sofia e António. Quem tenha estado na Quinta da Anunciada Velha em Tomar, a usufruir da principesca forma de receber dos Pinto da França, jamais esquecerá. Naquele local de muita História, a casa da quinta tomou-se um fantástico repositório das andanças pelo mundo dos proprietários. E recordo um dia em que pudemos celebrar lá a relação Luso-Indonésia, com vários protagonistas de um percurso muito complicado, em que foi possível superar dificuldades e vicissitudes e regressar a uma amizade genuína de dois povos tão distantes e próximos.
Há um ano estávamos a preparar a viagem do Centro Nacional de Cultura (CNC) a Minas Gerais e a sua ajuda foi preciosa. Com ele pudemos afinar os pormenores de maior requinte, porque ele conhecia o que de melhor havia na especificidade de cada identidade, de cada singularidade. Havia nele uma espécie de íman que o fazia aproximar-se naturalmente das referências antigas e da gente interessante. E se falo do Brasil, é porque foi a última ocasião em que pudemos trabalhar juntos. Mas antes houve os anos em que fomos pondo de pé, contra ventos e marés, e sempre graças à sua persistência, sensibilidade e conhecimento, a amizade entre Portugal e a Indonésia, numa relação apaixonada que APF trazia consigo desde o tempo em que, de 1965 a 1970, foi encarregado de negócios em Jacarta.
Desse período, veio não apenas o enamoramento pela Indonésia, mas também um conhecimento profundo sobre a história, a antropologia, a geografia da terra e dos afectos.
Quando se falava dessa amizade, os olhos iluminavam-se-lhe. E depressa nos sentimos envolvidos pelas referências, pelos objectos, pela descrição das personagens e das suas pequenas histórias. Leia -se A influência portuguesa na Indonésia. Está lá tudo o que deve estar. Há uma história comum a contar, de um encontro e de um diálogo. E quando fomos de ilha em ilha, de comunidade em comunidade, percebemos o porquê do enamoramento do diplomata que depressa se tomou embaixador dessas longínquas paragens onde quer que estivesse. Quando um povo chega tão longe, em condições tão precárias, ditadas pela distância e pelo esgotamento, só pode singrar, se ganhar o respeito dos novos interlocutores. E um dia o Sultão de Ternate dizia-nos que tinha boas memórias dos portugueses, enquanto missionários e mercadores, muito mais do que se fossem apenas guerreiros ou administradores. Afinal, as primeiras tarefas, mais do que as segundas, obrigam à proximidade e à confiança, sem o que não pode haver sucesso na palavra e na troca.
APF dedicou-se a tentar descobrir esses factores de ligação, essas pedras de toque, desde as imagens e monumentos até aos usos e costumes e à língua. Que é o património etimologicamente senão esse múnus que se transmite através da memória por diversas gerações? A referência patriarcal é um elo e uma metáfora. E num momento em que tanto se fala de memória histórica e de mundo que o português criou, devemos lembrar a sua lição extraordinária, segundo a qual não há transmissão sem troca.
O mundo que o português criou é, por isso, o mundo que outros criaram connosco. Daí esse sortilégio de partir e de ser capaz de ver de fora.
E o embaixador ensinou-nos, por isso, que a noção de "influência" nunca pode resumir-se a uma dominância ou a uma aceitação passiva.
Quando duas culturas entram em contacto urna com a outra, o resultado é o nascimento de uma terceira realidade. E se Portugal é denominador comum, o certo é que as novas realidades escapam-nos necessariamente, e aí está a sua riqueza. Só é possível sermos autênticos no tocante ao diálogo cultural, tomando-o verdadeiro intercâmbio e criação. Só assim poderemos superar desconfianças e suspeitas, através de um conceito novo e universalista de património cultural criador.
Que é o barroco brasileiro senão algo de totalmente novo que resulta de um encontro com realidades inéditas e com uma natureza diferente e inesperada? Que é o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda senão quem reúne idiossincrasias contraditórias - de carga positiva e negativa?
Hospitalidade e hostilidade. Agostinho da Silva falava de cultura de paradoxos. Eis por que razão falamos de várias culturas da língua portuguesa e de encontro da língua numa cultura de várias línguas. Poderá parecer estranho tudo isto, para quem não tenha conhecido António Pinto da França.
Guilherme d’Oliveira Martins