«Proh Pudor!»
Andava eu no meu primeiro ano do liceu, talvez em 46 ou já 47, quando os alunos mais velhos fizeram greve às aulas. Estávamos na Secção feminina do Liceu Salazar em Lourenço Marques - que posteriormente virou Escola Comercial, onde leccionei de 63 a 74 – e lembro o susto que apanhámos acompanhado do sentimento de admiração embasbacada pelas moças altas e arrojadas dos quartos e quintos anos que assim se rebelavam contra a autoridade docente que jamais nós, pequenitas, pensaríamos contestar. Recordo, sobretudo, o Dr. António Barradas, nosso excelso professor de Ciências Naturais, afadigando-se de umas turmas para outras, obrigando as faltosas a entrar nas suas salas, até que tudo ficou apaziguado e prosseguimos a nossa aula, donde ele saíra intempestivamente a pôr ordem no rebanho. Não me lembro se a imprensa escrita – em nossa casa não havia ainda rádio então, o primeiro e o segundo rádios que possuímos tendo sido ganhos em primeiro prémio pelo meu pai, em dois concursos de marcas de cigarros em épocas próximas, pelos meus treze e catorze anos – deu então grande relevo à greve dos alunos às aulas, mas julgo que não, o que confirma a argumentação de Isaías Afonso sobre a discrição e mesmo secretismo relativamente às notícias sensacionalistas perturbadoras da paz pública a que posteriormente se apelidou de paz podre, desses tempos de uma ditadura que mal senti, bafejada por um Governo que respeitou a minha infância de brincadeira e estudo em liberdade e posteriormente me ajudou em estudos superiores em Coimbra, com uma bolsa e isenção de propinas obtida pelo mérito da média das notas superiores a 13 valores, além da deslocação gratuita por barco para a Metrópole.
Em Coimbra também soube de protestos de alunos da Associação Académica, mas era aluna cumpridora, e tinha sido educada na obediência às normas impostas por uma política resumível na frase de Salazar que encontrei mais tarde afixada num dos patamares da escadaria no liceu de Aveiro, onde leccionei pela primeira vez: “Se tu soubesses o que custa mandar gostarias de obedecer toda a vida” que na Internet leio como constituindo o Decreto nº 21.014 de 19 de Março de 1932.
Sim, as notícias de escândalo político ou outros mais eram abafadas nesses tempos, o povo trabalhava e obedecia, o governo governava e mandava, as denúncias sobre os vários desvios eram suficientemente discretas para evitar especulações e exaltações que pusessem em causa a ordem do sistema. Na sombra ou na clandestinidade, marulhavam os fautores das desordens, presentes e futuras, mais ou menos abafadas pela polícia política, mantenedora da paz.
A reviravolta surgiu, caucionada pela força de um quarto poder mediático que rebentou com os três que mantinham a decência e a ordem, fossem estas ou não aparentes, subjugadas por uma hipocrisia danosa, ao que se dizia, em forma de ataque e desculpabilização do “nada na manga” igualmente fictício da transparência actual, que não evitou as desordens e corrupção em que vivemos hoje ancorados.
O texto de Isaías Afonso é suficientemente claro e decisivo sobre o estado de denúncia dos modernos tempos, sem que nos pesem na consciência “coisas que terei pudor de contar seja a quem for” que José Régio tão bem escreveu e Villaret tão bem declamou, que Cesário Verde não se importou já de traduzir, num sensacionalismo realista de deboche no seu “Proh Pudor”, denúncia fruto da inveja, segundo Isaías Afonso.