Nicolau, Príncipe Esterházy
Quando o jovem Haydn foi convidado a ingressar na Corte de Paul Anton, Príncipe Esterházy, deve ter julgado que ia ter uma vida calma que lhe permitiria ir compondo e tocando ao longo daquilo que qualquer artista ainda hoje considera uma vida tranquilamente produtiva, ou seja, sem calendários nem grandes compromissos para além dos inerentes a algumas récitas na Corte. E, sobretudo, sem stress. Contudo, o patrão morre prematuramente e sucede-lhe o irmão, Nicolau, novo Príncipe Esterházy. Melómano, foi para este que Haydn compôs a maior parte da obra musical que lhe conhecemos mas, afinal, num regime de tempo mais que completo, submetido a um programa de dois concertos e duas récitas de ópera por semana, fora sessões extraordinárias como as que ocorriam sempre que havia uma reunião política em que a orquestra era chamada a amenizar o pesado ambiente que por certo envolvia as rebuscadas negociações no seio de Império sempre em convulsão como era aquele Austro-Húngaro. O ritmo era tal que os próprios instrumentistas faziam turnos de modo a que estivessem sempre cerca de 25 ao serviço, nomeadamente durante o ofício religioso de Domingo que era sempre musicado. O mesmo se passava com os cantores e só o maestro é que não tinha ninguém com quem alternar. Mais: tinha que se apresentar três vezes por dia ao Príncipe para receber ordens ou apenas para saber que não havia ordens a receber. A orquestra não podia estar sempre a tocar as mesmas peças pelo que as novas composições tinham que ser feitas e aquilo que começara como um agrupamento musical relativamente pequeno adstrito ao serviço da capela, foi-se transformando numa instituição que começou a ter vida própria em resultado das expectativas que à sua volta se iam criando. E essa relevância começou a pesar no bolso do Príncipe a ponto de que o prazer original se começou a transformar em preocupação chegando mesmo a provocar momentos de tensão na Corte que supostamente deveria descontrair. A hidra crescera e agora tinha que ser alimentada. Para que a pressão diminuísse na sua bolsa, Nicolau autorizou Haydn a compor para outros clientes mas finalmente acabou por ceder em toda a linha e teve mesmo que o deixar ir para a Corte de Londres por tempo indeterminado. O compositor voltou à Áustria alguns anos mais tarde e não há a certeza sobre se gostou sinceramente do monumento que o Príncipe entretanto lhe erigira. John Maynard Keynes convenceu o Presidente americano, Roosevelt, de que a crise que se estava a verificar pelo final dos anos 20 do século XX nos EUA deveria ser combatida com um vasto programa de obras públicas que relançasse o emprego e reanimasse as empresas de algum modo ligadas ao sector. A fundamentação prática da teoria do investimento fez escola e o instrumento das obras públicas passou a ser tocado com grande profusão atirando mesmo a análise da utilidade das obras para segundo plano. O argumento de que o keynesianismo é a forma de relançar a economia tem pesado o suficiente para que haja mesmo quem pense que a realização de muitas obras públicas é um índice de desenvolvimento quando, na génese, é o resultado da falta de genuíno progresso. Não é necessário recuarmos muito no tempo português para termos exemplos típicos deste tipo de políticas: as barragens hidroeléctricas, as auto-estradas, as grandes pontes, a política de habitação própria. Assim como no início não fiz juízos de valor sobre as composições de Haydn, também agora não teço comentários à utilidade das obras públicas exemplificadas. O que mais interessa é constatar que o keynesianismo deu azo à constituição de empresas de significativa dimensão que começaram por servir um Estado dinamizador de uma débil Economia mas que, entretanto, não tendo previsto a possibilidade de esse mesmo Estado se ver obrigado a reduzir despesas, consideram nacional uma crise sectorial e, mais concretamente, resultante da natural necessidade de redução de um défice público claramente excessivo. E o regresso ao keynesianismo numa fase em que a redução do défice público não está confirmada, significa que essas empresas deixaram claramente de servir o Estado para passarem a servir-se dele. Resta a esperança de que as obras a lançar sejam efectivamente úteis e que o investimento tenha algum retorno. A hidra cresceu e agora tem que ser alimentada. Assim como Haydn teria morrido à fome se não tivesse começado a compor para outros clientes e não tivesse mesmo acabado por ir para Londres, também as empresas portuguesas carentes da doutrina de Keynes deviam ter sido mais expeditas na busca de novos clientes dentro e fora de Portugal. Contudo, não seria justo que não lhes reconhecêssemos um mérito muito grande no combate que lideraram à popular mentalidade revolucionária dos anos 70 do século passado. Ao longo desta trintena de anos, a política de crédito à habitação por que tanto pugnaram, levada a cabo por sucessivos Governos, fez com tenhamos hoje uma das taxas europeias mais elevadas de habitação própria e já estamos mesmo a sobressair nas estatísticas de segunda casa. Como só é revolucionário quem nada tem a perder, quem tem casa própria deixa de embarcar em vanguardismos políticos que ponham a estabilidade patrimonial em causa. Não há dúvida de que se têm servido do Príncipe mas, afinal, também têm servido os súbditos de Sua Alteza. Mas isso não invalida a necessidade de redução do défice público e de lançamento do mercado de arrendamento de habitação. Lisboa, Abril de 2004 Publicado em 16 de Abril de 2004 no Suplemento de Economia de "O Independente"