«É RABO PARA AQUÉM DO LAGARTO, REMEXIDAMENTE»
É de Pedro Mexia o artigo “O Aleijão”, saído na revista ATUAL do Expresso, de 25 de Maio. Um texto que pretende ser mais uma machadada num AO deliberadamente produzido e aprovado e, ao que parece, ratificado, visto que as nossas escolas e as publicações se regem por ele, mau grado as brilhantes interferências opositoras dos muitos autores e organismos citados por Mexia.
Por ele perpassam os termos de não adesão de brasileiros ilustres, e as inépcias explicativas do nosso economista PR, provavelmente receoso de transformar os falantes do seu país em representantes de um renovado “romanço” galaico-português da nossa proto-história linguística ultrapassada, caso se não aderisse às convenções de modernidade, e Casteleiro, mais condescendentemente, atribui a uma questão de política, embora os menos condescendentes atribuam antes o esforço hercúleo dos acordistas a uma questão de genuflexão de humildade e penúria, tese que Mexia nega com justificações, parece-me, menos lógicas. Na realidade, a recusa dos brasileiros à aceitação do AO não implica uma menor baixeza do lado português. Pelo contrário, até a acentua.
Mas é nessa que patinhamos. Continuemos.
«O aleijão»
Volto ao assunto porque o assunto continua. Deu-se até o caso de os defensores da coisa andarem por aí mais mudos do que as consoantes a que chamam, toscamente, mudas. E depois de o Brasil ter suspendido o “acordo” ortográfico para avaliação, muita gente começou a perceber que não há inevitabilidades, nem combates perdidos à partida, apesar das traições dos académicos e da cobardia de certos políticos deste Governo, que se diziam anti-acordistas quando estavam na oposição.
Pessoas que achavam que “tanto faz” ou que era muito barulho para nada, começam a dar ouvidos a Eduardo Lourenço e a António Lobo Antunes; a Vasco Graça Moura e a José Gil; a Pacheco Pereira e a Miguel Esteves Cardoso; até a Ricardo Araújo Pereira e João Pereira Coutinho, que devem estar de acordo em poucos assuntos. E talvez essas pessoas tenham lido as seguintes notícias: a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa não aplicou o “acordo”; a Associação Portuguesa de Linguística criticou-o; o PEN Clube recusou-o; a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros distanciou-se deles; a Sociedade Portuguesa de Autores e a Associação Portuguesa de Escritores não o aceitam.
Foi-se tornando claro como água que o “acordo” ortográfico não é um acto cultural. É um acto político, como reconheceu aliás o autor mortal da iniquidade, Malaca Casteleiro, em declarações a este jornal: “Isto não é uma questão linguística, é uma questão política, uma questão muito importante do ponto de vista da política da língua no âmbito da lusofonia. Esquece-se muitas vezes que, para haver lusofonia, tem de haver medidas concretas e de alcance prático e esta é uma delas.” E que tal “medidas concretas e de alcance prático” como uma CPLP relevante, um Instituto Camões activo, apoios às traduções e aos leitorados, bibliotecas bem equipadas? Era mais útil, menos megalómano, menos nocivo.
Também caiu a tese, assacada em bloco aos anti-acordistas, de que o “acordo” é uma “cedência ao Brasil”. Porque entretanto multiplicaram-se as reacções hostis além-Atlântico. O dramaturgo Adriano Suassuna, por exemplo, preferiu sair dos manuais escolares a ver os seus textos escritos em “acordês”. E o grande Millôr Fernandes, antes de morrer, teve ainda tempo para declarar em bom português: “O acordo ortográfico é uma merda.” Um reputado especialista em Camilo Pessanha, Paulo Franchetti, da Universidade Estadual de Campinas, declarou: “O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano; a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o Governo apressadamente impôs como lei (…). O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos, de eficácia duvidosa.” Não vale a pena tentar apresentar anti-acordistas como “antibrasileiros”, porque há bem mais brasileiros anti-acordistas.
Infelizmente, muitos portugueses pregam o aleijão como se fosse um unguento. O actual Presidente da República disse um dia que o português de Portugal se arriscava a tornar-se uma espécie de latim, como se uma variante falada por dez milhões de indivíduos equivalesse a uma língua morta. Já a grotesca “Nota Explicativa” ao “acordo” explica que os portugueses estão “teimosamente” apegados à sua grafia, dando-nos reguadas de mestre-escola pela nossa impertinência cultural. Para acabar com tal desfaçatez, uns quantos sábios da Academia de Ciências de Lisboa impuseram aos lusofalantes a sua aberrante legislação, quando nos países onde existem Academias realmente prestigiadas vigoram recomendações não vinculativas, dicionários excelentes, consensos transcontinentais. Mas os políticos e os académicos não se contentam com uma língua que muda espontânea, inevitável, e constantemente; querem mudanças por decreto, como déspotas iluminados que são.
Fizeram o “acordo” ignorando os pareceres técnicos divergentes e a opinião de agentes qualificados da língua. E agora assustam-se com o levantamento cívico. Perceberam que fracassaram, que nem todos nos calamos, que estivemos atentos às consequências. O “acordo” quis unificar a língua e multiplicou duplas grafias, facultatividades, cláusulas de excepção, “opting outs”. Quis simplificar o ensino e cortou as palavras da sua raiz etimológica, da sua família, dificultando uma compreensão de conjunto. Quis ser um acordo “lusófono” e pouco mais é do que um contrato luso-brasileiro, do qual os brasileiros duvidam. E agora ainda passámos pela humilhação de ter o oficioso “Jornal de Angola” a lembrar-nos que o “étimo latino” ajuda a compreender o percurso de uma palavra.
Este acordo não serve, não presta, é preciso denunciá-lo ou, no mínimo, revê-lo em profundidade. É preciso acabar com aberrações como a recessiva “receção” e o tauromáquico “espetador” e a lasciva “arquiteta”. E com a fantasia de que as consoantes que abrem as vogais são “mudas”. E com a ideia de que a escrita é uma transcrição da fonética. Introduzam o xis, o ípsilon e o zê, escrevam Janeiro e Inverno com minúscula, mas deixem em paz a língua portuguesa. (*)
Pedro Mexia
(*) As citações são retiradas de “Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico”, de Pedro Correia Edição Guerra e Paz)