CURTINHAS CIX
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v Aqueles 11 actores que apresentei no escrito anterior não estão isolados, cada um em seu canto. Pelo contrário, interagem continuamente, uns mais, outros menos (e alguns, como veremos lá mais para diante, quase nada). No caso da economia portuguesa, “resto do mundo” à parte, dependem todos uns dos outros: o sucesso de uns não existiria sem a acção (e a cooperação) de outros.
v A liquidez, ao passar de mão em mão, deixa mais folgada a restrição nominal de quem recebe e aperta a restrição nominal de quem paga. O que permite às Famílias, comprarem, restituindo às Empresas pelo menos uma parte do dinheiro que delas recebem – e às Empresas continuarem a produzir e a remunerar o emprego. É assim que funciona uma economia de base contratual.
v Para se fazer uma ideia do que sejam estas interdependências, recorro a 4 eras, começando pela mais simples (era I): uma economia sem “resto do mundo”, sem Operadores Financeiros e sem Governo.
[NOTA: É uma ficção, escusado será dizer. Historicamente, as coisas não se passaram assim, mas dará para perceber o papel das diferentes formas de intermediação e os problemas que cada era não tem como solucionar.]
v À era I corresponde uma organização da economia rudimentar:
(i) só há lugar para um único tipo de Empresas - aquelas dirigidas totalmente à procura interna (o 4º e último tipo de Empresas, no escrito anterior);
(ii) a liquidez circula, unicamente, através da intermediação comercial e do emprego. Mas que liquidez será essa? De onde provirá?
v É que, sem liquidez não há economia de base contratual. Ou há troca directa (a outra face das economias próximas da subsistência), ou há um ditador iluminado que se apropria de toda a produção e a distribui conforme melhor lhe aprouver (com as preferências das Famílias, ou fixas e imutáveis, ou completamente irrelevantes).
v Se a população crescer, até que esse surto demográfico chegue à idade activa, a mesma produção de antes terá de dar para mais bocas. Logo (propositadamente, deixo de lado as condicionantes que o “nicho ecológico” impuser):
(i) ou mais emprego (se houver Famílias Activas sem emprego);
(ii) ou mais tempo de trabalho (se a economia estiver já em pleno emprego);
(iii) ou menos produto per capita (ou seja, menos bem-estar actual na esperança de maior bem-estar, no futuro).
v Mas, se a população diminuir, a economia entrará numa espiral descendente: a procura interna, ao cair, arrastará com ela o emprego. E, se a queda for suficientemente pronunciada, levará ao encerramento de Empresas, com o número de Famílias Activas sem emprego a aumentar, o que acelerará a contracção da procura interna - e assim sucessivamente, até se encontrar um outro equilíbrio (se tal ainda for possível). Esta era I não comporta de todo medidas anti-cíclicas.
v Ah! E o espírito empreendor que leva a criar mais Empresas, reduzindo o número de Famílias Activas sem emprego? Não estará aí a solução? O problema residirá, então, no volume de liquidez que, sendo exógeno (caíndo do céu, para já), é fixo. Como encontrar espaço para a nova produção, partindo do princípio de que existe procura para novos bens e novos serviços?
v Uma de três:
(i) ou aumenta a velocidade com que a liquidez circula entre Empresas e Famílias Activas – o que implica as Empresas modificarem a tecnologia para operarem com ciclos de produção mais curtos e poderem fazer pagamentos mais frequentes;
(ii) ou ocorre uma baixa de preços (incluindo o preço do emprego) generalizada - com a singularidade de ao mesmo PIB nominal corresponder, agora, maior disponibilidade de bens e serviços (maior PIB real);
(iii) ou alguma Empresa terá de desaparecer para dar lugar à nova Empresa – e o nível de emprego pouco variará.
v E o que acontece se os prazos de pagamento variarem de Empresa para Empresa e de Família para Família (ou seja, como lidar com diferentes ciclos de tesouraria)? É que a intermediação comercial está longe de determinar ciclos de tesouraria iguais: os monopólios impõem, quase sempre, prazos de pagamento muito curtos - e a concorrência pode levar algumas Empresas a concederem prazos de pagamento excessivammente dilatados.
v Na era I não há solução para Empresas com ciclos de tesouraria de tal modo longos que a intermediação comercial é incapaz de reconstituir a tempo as respectivas restrições de liquidez: não sobrevivem, asfixiadas pela falta de dinheiro que as impede de continuar a contratar.
v E se a produção das Empresas não satisfizer as preferências das Famílias? Eis uma dificuldade que só existe na imaginação dos teóricos: sem “resto do mundo” a tentar com outros bens e outros serviços, prefere-se o que se conhece – e conhece-se o que as Empresas têm para oferecer.
v Contudo, nada garante que todas as Famílias Activas com emprego obtenham das Empresas a liquidez de que necessitam para viver: tudo depende da variedade de preferências na procura interna, das tecnologias conhecidas e do “nicho ecológico” – sem esquecer os poderes contratuais em jogo.
v Dito de outro modo, a era I não está livre de assimetrias pronunciadas na distribuição do rendimento. A acontecerem, vão determinar, quer a composição da procura interna, quer a relação entre Famílias Activas com emprego e restantes Famílias (o grau de dependência social).
v É um problema clássico da teoria económica (“Será que a oferta gera a sua própria procura?”) a que a intermediação comercial vai dando solução, tant bien que mal. Mas daí até ao perpétuo equilíbrio a distância é enorme: a era I pode conhecer prolongados e dolorosos desequilíbrios.
v Fica ainda por resolver um outro problema: Como é que as Famílias Activas sem emprego e as Famílias Inactivas podem obter a liquidez de que necessitam para celebrar contratos e sobreviver? Uma vez que só a intermediação comercial e o emprego fazem circular a liquidez, não participar na produção é ficar excluído do processo de distribuição do rendimento que alimenta as restrições nominais e torna possível apropriar, através de contratos, bens e serviços.
v Resta-lhes:
(i) ou integrarem-se nas Famílias Activas com emprego (partilha);
(ii) ou receberem doações (dádivas) de Famílas Activas com emprego (o que vem dar quase no mesmo);
(iii) ou há outras formas contratuais que levam Famílias e Empresas a transferirem liquidez para as Famílias, em geral (participação no capital, empréstimos, arrendamentos, etc.).
v Como se vê, mesmo na era I, a teia de contratos que são necessários para a economia funcionar não pode deixar de ser bastante complexa (o que nos conduz à era II). Mas, quanto menos sofisticada for essa teia de contratos, mais elevado poderá ser o grau de dependência social.
v Enfim, a pergunta inicial: dinheiro, liquidez - o que será? Sem Operadores Financeiros, o dinheiro só poderá ser um objecto (mercadoria-dinheiro) que todos aceitem em pagamento - e, desse modo, alcandorado à categoria de instrumento geral, quer na intermediação comercial, quer para remunerar o emprego.
v O volume de mercadoria-dinheiro em circulação é, assim, totalmente independente do nível da procura interna de bens e serviços (o PIB real) – mas o inverso não é verdadeiro. Um afluxo inesperado da mercadoria-dinheiro baralha as preferências das Famílias, perturba o processo de distribuição de rendimento – e, tarde ou cedo, acabará por interferir com o próprio processo de produção (o que é dizer, com as Empresas e com o PIB real).
v Em sentido oposto, a redução súbita do volume de mercadoria-dinheiro:
(i) ou é imediatamente apercebida por todos, que ajustam voluntariamente os seus rendimentos (preços e remuneração do emprego) - com a consequente queda do PIB nominal (mas não do PIB real);
(ii) ou é a crise - com Famílias e Empresas (se não todas, pelo menos um número significativo) a terem cada vez maior dificuldade para reconstituirem as suas restrições nominais.
v Nem mesmo um volume de mercadoria-dinheiro constante está livre de problemas. Se a procura interna (e o PIB real) cair porque a população diminui, o excesso de mercadoria-dinheiro que daí resulta poderá, talvez, manter o PIB nominal (por força do aumento dos preços de bens e serviços tornados escassos). Mas só novas tecnologias (Empresas) e preferências diferentes (Famílias) conseguirão o milagre de relançar o PIB real (e o bem-estar).
v Na era I, as crises têm, assim, quatro causas possíveis:
- Uma evolução demográfica nada suave: aumento brusco, ou diminuição brusca, da população;
- Alterações no “nicho ecológico” – nomeadamente, na disponibilidade da mercadoria-dinheiro (choques exógenos, porque não têm directamente a ver com as preferências das Famílias e a organização da economia);
- Mudanças súbitas e profundas nas preferências das Famílias (a psicologia colectiva a fazer das suas);
- Falta de soluções para integrar Famílias e Empresas no processo de distribuição do rendimento (falhas na organização da economia).(cont.)
A. Palhinha Machado
MAIO de 2013