A CASA AMARELA
Arquivo particular da Autora
Vistosa, espaçosa, elevada acima de um porão que lhe ventilava a base, aquela casa guardava uma triste história. Seu dono, um rico coronel, chefe político local, contratara um mestre-de-obras português para executar a obra, segundo o gosto arquitectónico eclético da época. A beirada do telhado, arrematado por larga tabeca branca, a fachada adornada por janelas altas, decoradas com barrados em relevo, fechadas por vidros coloridos, o alpendre e portão resguardados por grades de ferro fundido, ricamente trabalhado, vindo da Bélgica, diziam que os proprietários eram pessoas abastadas. Na praça, a casa era identificada pelas paredes de cor amarela. No bem cuidado jardim, virado para o nascente, canteiros de perfumosas rosas-chá, fechados por baixos e adensados bardos de pingos de ouro, eram o orgulho da dona da casa.
Gumercindo Ferreira, filho de rico fazendeiro, fora estudar no Rio de Janeiro. Anos depois voltou pra cidade do interior, como advogado. Fez carreira política, e casou com Zulita, a mais bonita jovem daquela sociedade, ela também filha de outro fazendeiro. Tiveram quatro filhos, dois homens e duas mulheres. Construíram a casa amarela e uma família feliz e bem relacionada que despertava inveja entre adversários e aliados políticos.
Naquele final de século, o prefeito ultimava os preparativos para receber um jovem médico que vinha do Rio de Janeiro, para divulgar as medidas preventivas no combate à tuberculose, doença insidiosa, milenar, que grassava entre os cariocas e que já se manifestava no interior mineiro. Era a doença social, temida, identificada em ossadas de homens pré-históricos, registrada desde o tempo dos faraós, que vitimava além de a população mais carente, a juventude cultural brasileira
Na Inglaterra, a era industrial esvaziara a zona rural e super povoara a urbana, levando a um desequilíbrio sócio ambiental, com um aumento significativo das más condições de vida, e da incidência de tuberculose nas cidades. Quando o pesquisador e patologista alemão, Robert Koch, identificou o bacilo, tornou-se urgente assumir medidas profiláticas...
Enquanto na sala principal as senhoras da sociedade discutiam os arranjos domésticos para recepcionar o convidado, no escritório, o prefeito e os demais representantes do poder público programavam as actividades do enviado da Secretaria da Saúde. As deliberações eram intercaladas por longas baforadas de fumo, goles de café macho (forte) e estridulosas escarradas, ejectadas em ricos bacios de porcelana, as escarradeiras, estrategicamente colocadas ao lado dos fumantes. Era um comportamento social considerado elegante, mas perigoso, como o jovem médico iria mostrar.
O Dr. Saraiva chegou à tardinha. Por falta de hotel com melhores acomodações, ficou hospedado na casa amarela, de propriedade do prefeito. Apresentado às filhas deste, logo à primeira vista, ficou encantado com a beleza e amabilidade da mais jovem, a linda Cordélia. Alta, esguia, tez branca e delicada, parecia um perfumado lírio do pântano. À noite, ao jantar, conheceu os outros filhos do casal Gumercindo/Zulita, jovens admirados pela educação e bom trato. Naquela época, era hábito entre as famílias tradicionais mineiras, mais abastadas e culturalmente evoluídas, enviarem os rapazes para estudar no Rio de Janeiro, ou então no estrangeiro, em geral, Portugal ou Inglaterra. Um deles era violinista e o outro advogado, os dois fazendeiros, criadores de gado de raça, e como o pai, prováveis figuras políticas locais.
Na varanda, embalando a recepção, dois afamados violeiros da região ( o virtuosismo diziam, era porque tiveram os dedos banhados em gordura de cobra)- dedilhavam e cantavam uma plangente moda de viola sertaneja. No céu, a lua e as estrelas derramavam uma luz de prata sobre a noite quente da Princesinha do Sertão. Animada, a conversa girava em torno das novidades vindas da capital. O Dr. Norberto Saraiva não se fazia de rogado, respondia com prazer a tudo que lhe era perguntado. Por fim, com ar sério, confidenciou à plateia familiar sobre o grave problema em que se debatia o país, a tuberculose. Trazia àquelas paragens as medidas preventivas sociais, que incluíam entre outras, a orientação à população para que não se cuspisse ou escarrasse nas ruas, para que se evitasse o uso de escarradeiras, e ambientes com muita gente, fechados e sem ventilação. O Bacilo de Koch (Mycobacterium tuberculosis) se propagava no ar de pessoa para pessoa e a doença se manifestava de acordo com a susceptibilidade, tempo de exposição ao micróbio, e condição física do infectado. Infelizmente para os anfitriões, donos da casa, as notas preventivas chegavam tarde demais...
O hospede trazia também noticias sobre o sucesso do livro editado na Dinamarca (E Museo Lundii) que descrevia as descobertas do médico, e paleontólogo dinamarquês Peter W. Lund, feitas em Minas Gerais, quando este veio para o Brasil, para fugir do grande Mal Social (Morbis Contagiosis), que na sua terra natal havia consumido a saúde e a vida de dois irmãos. Nos relatos destacavam-se as ossadas de mamíferos pré-históricos, como o tigre dente-de-sabre, e os ossos fossilizados de homens pré-históricos, a que ele singularmente chamou O HOMEM DA LAGOA SANTA. Descrevia ainda a exploração de 200 grutas, entre quais a espectacular Gruta de Maquiné que, segundo o fundador da Paleontologia Brasileira, jamais vira igual com tanta beleza.
Desde que em 1808, D. João VI liberou os portos às nações amigas, que o Brasil vinha recebendo ano após ano a visita de artistas e estudiosos que, curiosos, a convite ou por conta própria, vinham desvendar os mistérios de uma terra propalada como exótica.
Entre o namoro e o noivado pouco tempo se passou. O Dr. Saraiva deixou a noiva, preparando o enxoval, e voltou para concluir o seu trabalho na capital. Marcaram o casamento para Novembro, época das águas, e da fartura. Mas, à medida que o tempo passava, as noticias rareavam, até que o silêncio passou a falar mais alto. Cordélia pressentia que algo muito grave acontecera. Não se enganara, a má noticia chegou ao gabinete do Prefeito; o jovem Dr. Norberto Saraiva há tempos doente, sucumbiu na sua luta contra a tuberculose.
Cordélia chorou até não ter mais lágrimas. Por fim, deixava-se ficar à janela, absorta, calada, olhar perdido no horizonte. Não ria e não saía, não comia, parecia com nada se importar. A pele perdeu o viço, os olhos ficaram baços. Emagreceu. Uma tosse seca, persistente, e a febre vespertina deram ao médico da família o diagnóstico temido; estava tuberculosa. Definhava. Em pouco tempo os acessos de tosse tornaram-se frequentes, catastróficos, hemorrágicos, até que prostrada no leito, pálida como os lírios que cresciam nas margens do riacho da fazenda, expirou. Findavam-se assim os sonhos e a vida da jovem nubente.
Como uma nuvem negra, a doença se debruçou sobre aquela família. De nada valeram os procedimentos e receitas médicas, as garrafadas de raizeiros, as simpatias, as omeletes ora-pro-nobis, as viagens às serras de Campos do Jordão, aos Sanatórios da Suíça. Um por um a peste branca levou. O chefe da família, a filha mais velha, os dois jovens promissores, só ficou, resistente à moléstia, Zulita, que a todos enterrou. Vinte anos depois, já bem velhinha, sentada na varanda, olhando as suas amadas rosas, em fim descansou.
Dizem que após a morte da dona da casa amarela, os parentes e herdeiros alugaram o imóvel. Mas, por fatalidade do destino, os inquilinos também morreram tuberculosos. Depois desse caso, ninguém teve mais coragem de ocupá-lo. Por muitos anos ficou abandonado.
Algum tempo atrás, ao passar pela praça, onde está o que sobrou da casa amarela, via-se, no que fora um jardim, um cartaz de uma construtora anunciando um novo empreendimento arquitectónico residencial para o local. Superstição ou não, o caso é que meses se passaram e nada ali foi feito. Soube-se então que a Companhia Construtora faliu...
Uberaba, 13 de Maio de 2013