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A bem da Nação

MONJAS DA LITERATURA – 5

 

Agora, Nélida Piñon, uma das mais importantes escritoras brasileiras, ela mesma uma monja da literatura, nos oferece o seu Livro das Horas.

 

Os Livros das Horas eram livros de orações que as pessoas consultavam como oráculos para encontrar sentido e consolo para as aflições da existência. No seu particular Livro das Horas, Nélida alia sua capacidade de contar histórias ao património precioso de sua memória.

 

Logo no princípio ela anuncia: “Não vivi sem resultados, minha vida não foi inóspita.” Família, viagens, leituras, objectos da casa, história, amigos escritores como Clarice Lispector e Rachel de Queiroz, anotações, frases de escriba, declarações de amor à vida e à língua portuguesa, formação literária, mitos revisitados, imaginação como razão de viver, pequenos arrependimentos, o tempo reflectido no espelho, o carácter dramático e emocionado de artista da palavra, tudo está ali, nas horas descritas.

 

A certa altura, Nélida confessa que lê a vida dos santos, as hagiografias, analisando atentamente neles a tentação do pecado e como cada um reagiu diante dos reclamos de sua humanidade, pois não há vida sem pecado, sem deslizes que desagradem a Deus.

 

Justificando o título do livro, Nélida lembrou de Wilgefortis, a santa mais bizarra da Idade Média, patrona das mulheres barbadas, condenada à morte por seu próprio pai, um rei luso. Explica ela: “Wilgefortis, por exemplo, cedo ganhou o estatuto de santa. Desconfio que, além dos méritos próprios, pesou a sua estranheza. Lá está ela no Livro das Horas, as folhas iluminadas com o raro esplendor de seu enredo. Ao manusear a página que a ela se refere, seu martírio me é incompreensível. Como compreender a fé que a animava e levou-a à morte? Enquanto penso em seu martírio, esqueço o livro das orações. E não peço por ela e nem por mim. Constato que rejeito a salvação ao preço do horror.”

 

Num de seus ensaios, Nélida, em sua discreta elegância, fala sobre seu relacionamento de amizade com o instigante poeta Bruno Tolentino, o autor do As Horas de Katharina. Bruno, segundo Nélida, “foi belo na juventude, brilhante e atrevido. O espírito atilado e a habilidade verbal afugentavam os passageiros do quotidiano verbal. Uma fúria que ainda persiste.”

 

Sobre um encontro que teve com o questionador poeta Tolentino, ela recorda: “Desejo encerrar o questionário para falarmos do passado de Clarice Lispector e Marly de Oliveira. Quando as três íamos visitá-lo no sítio, em Jacarepaguá, onde criava galinhas. Na horta, colhíamos frutas, legumes, ovos, enxotávamos as moscas. No alpendre, saboreávamos o café e as rosquinhas. Na hora do almoço, a comida mineira, que vinha à mesa, era de boa cepa. Ríamos e sentíamo-nos jovens e eternos, na iminência de adquirir um amadurecimento que inevitavelmente envenenaria o nosso futuro.”

 

Durante a visita, Tolentino insiste em fazer perguntas filosóficas e capciosas a Nélida, ela o dissuade de prosseguir, mencionando a poesia dele, o bilhete carinhoso que encaminhara a ela dias antes. Ele aceitou o desfecho da entrevista e ela enalteceu seus olhos em chama. Nélida constata então que todos, Tolentino, Clarice e Marly, já se foram. Ela é a única sobrevivente. E chora.

O Livro das Horas de Nélida Piñon nos mostra que quando nos dedicamos a um ofício e ao aprendizado do amor “as horas não passam em vão.”

 

Sinto-me monja, irmã, sóror, sacerdotisa mística de minha própria poesia. Bebo do cálice da Arte e da Dor. Tive uma vez, em sonho, esta visão: eu estava nua, colocaram-me um manto prateado, bordado de abelhas vivas em forma de lírios e, na cabeça, uma coroa entretecida de palmas róseas como corais cristalizados. Aspergiram sobre meu cabelo um incenso raro, que se desprendia perfumado.

 

Do meu umbigo nasceram petúnias que revestiram meu corpo de pétalas e de folhas tenras. E assim, vegetal e esplendorosa, senti queimar a dignidade dentro do meu coração.

 

FIM

 Raquel Naveira

 

In Revista Lusofonia Blog dos Países de Língua Portuguesa

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