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A bem da Nação

MONJAS DA LITERATURA – 1

 

Nasci mulher. A feminilidade expressa em minha poesia me faz fantasiar com figuras romanescas nascidas da história e das lendas: sou princesa, esfinge, árvore, flor, pedra, nuvem, infanta, castelã, monja...

 

Monja. Esse foi um ideal louco que sempre tive. Isolar-me por fé e cálculo da sociedade. Viver uma vida austera entre livros, jardins, meditações, silêncio, votos solenes.

 

Monja, freira, soror... A literatura é rica de vozes de monjas solitárias, desnudando suas almas em preces, poemas e cartas.

 

******

 

(*)

 

Que emocionantes as Cartas de Amor ou Cartas Portuguesas de soror Mariana Alcoforado. Publicadas pela primeira vez na França em 1669, essas cartas são uma das obras mais populares da Literatura Portuguesa. Mariana nasceu em Beja, em 1640. Desde menina professou no Convento de Nossa Senhora da Conceição, em sua cidade natal. Conhece Chamilly, oficial francês servindo em Portugal, durante as guerras da Restauração. Apaixonam-se. Ele regressa à França por ordens militares. Trocam cartas, das quais só ficaram as escritas pela freira, que falece em 1723, após amarga penitência.

 

Coloquei-me na pele deMariana. Presa no convento cheio de varandas e flores, perto de uma fonte, encontrou-se com Chamilly, a paixão proibida e insana. Entregou-se a ele, sufocando-o com seu manto negro brocado de estrelas. Depois que ele partiu, enviou-lhe cartas tensas e dramáticas, que estilhaçaram seus nervos, levando-a a transes e sangrias. Nessas cartas, escrivã sem pejo, traída, abandonada, expeliu toda sua fúria, seu ódio de fêmea pagã, queimando de desejo. Escreveu assim: “A esperança me proporciona prazer, só queria sentir a minha dor. Que seria de mim sem esse amor e esse ódio que enchem meu coração? O que vai ser de mim? Morro de vergonha.”

 

Mariana, amante suprema, ofereceu-se a um cínico, a um ingrato e por ele feneceu e morreu com dores cruéis como as de Cristo no Calvário.

 

*******

 

Octávio Paz, o poeta e ensaísta mexicano, ganhador do Prémio Nobel de 1990, falecido em 1998, trouxe do século XVII a voz de sóror Juana Inés de la Cruz, freira mexicana, bela e inteligente poetisa, que nasceu e viveu entre 1648 e 1695. Era requisitada e festejada, tinha amigos nos altos círculos da corte e consagrou-se como nome importante da literatura espanhola. Escreveu certa vez a um amigo ausente: “Ouve-me com os olhos/ já que estão distantes os ouvidos” e “Ouve-me surdo, pois me queixo muda.” Ela amava os paradoxos, os jogos de palavras e conceitos, bem ao estilo barroco.

 

O livro Soror Juana Inés de la Cruz: as armadilhas da fé é um monumento. De um lado Octávio Paz como autor de uma prodigiosa façanha intelectual e, de outro, Juana Inés actualizada e revigorada. Há uma total mistura de géneros. Trata-se de uma biografia, mas carente de documentação e abundante de imaginação. Envereda por assuntos como crítica literária, história do México, sociologia de um período. É o esforço de uma pessoa para compreender outra, para decifrá-la depois de três séculos. Octávio Paz é o erudito engenheiro do tempo, cheio de inteligência e sensibilidade, dialogando com Juana Inés nos tons de romancista.

 

Soror Juana Inés nasceu Juana Ramírez, filha de pai que ela não chegou a conhecer e de uma mãe de família remediada. O quadro histórico era o do México colonial, “um país enorme, próspero e pacífico”. Amava os livros e, a certa altura, desejou vestir-se de homem para frequentar a universidade. Acabou entrando num convento para executar seu projecto pessoal de estudar e aprender. Quando já era escritora aclamada em todo mundo hispânico, decidiu entregar-se inteiramente a uma silenciosa vida religiosa.

 

No início de 1693, sóror Juana renunciou às letras. Humilhou-se, confessou seus pecados, anulou-se, entregou aos prelados a sua biblioteca particular, depôs as armas. Isolada e penitente, morreu dois anos depois, aos 46 anos, talvez de peste. Terá sido renúncia? Uma espécie de conversão profunda e radical? De busca de total santidade? Ou terá sofrido perseguição ferrenha de superiores religiosos desconfiados e invejosos? Terá tido receio da excomunhão e das fogueiras da Inquisição?

 

Octávio Paz compara a perseguição de que foi vítima sóror Juana com práticas similares adoptadas pelos regimes comunistas do século XX. Os dois casos, segundo ele, “unicamente se podem dar em sociedades fechadas, regidas por uma burocracia política e eclesiástica que governa em nome de uma ortodoxia”. Octávio Paz, com sua potência imaginativa, abraça física e espiritualmente a freira oprimida e silenciada. Lendo esse livro, escrevi:

 

Ó musa do México!

Tua alma nasceu de dentro do sol,

Em tua poesia

Bailam índios,

Negros,

Narcisos,

Evangelizas com doçura

A América esmagada de sangue.

Ó musa do México!

Tua cela de monja era teu refúgio,

Cheia de livros,

Banjos,

Lunetas,

Ora lias,

Ora tocavas,

Ora observavas caudas de cometas.

Ó musa do México!

Que mente prodigiosa era a tua?

Capaz de investigar versos,

Cristais,

Colcheias,

Astros,

Mistérios

Com tanta força transcendente?

Entre piratas salteadores,

Índios rebelados,

Fome, peste,

Perseguição,

Renunciaste a toda arte humana

Pelo destino de santa,

Ó mártir mexicana!

 

 Raquel Naveira

 

(*) desenho de Autor não identificado na Internet

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