Conversa fiada 2ª parte
Resumo da 1ª parte: Conversa fiada porque vem com o fio das notícias e de acontecimentos que podem não ter sido notícia; nem só as evoluções de médio e longo prazos são importantes pois as variações sazonais também o podem ser para uma sociedade; os Estados europeus vão-se dissolver na letra da lei; o referendo europeu deve ser único à escala europeia com todos os cidadãos a votarem directamente para um único resultado global sem ponderação para cada Estado; os franceses têm toda a legitimidade para se pronunciarem sobre a adesão turca; a Turquia tem que esperar muito para reunir as condições necessárias à adesão; actualmente, as sociedades islâmicas não possuem condições para terem uma democracia à nossa imagem e semelhança e necessitam de regimes autocratas, laicos e de inspiração castrense.
Jornalista Depois deste intervalo, continua a pensar como no final da conversa anterior no que respeita à democraticidade das sociedades islâmicas?
Economista Bem vê: eu não disse o que disse porque estava cansado ou a precisar de um café; eu acho exactamente aquilo que disse e não me parece de mais repetir aqui o que já afirmei noutros locais sobre as grandes diferenças comportamentais entre nós, os ocidentais e os islâmicos.
Jornalista E quais são?
Economista Várias e muito importantes. Mas hoje eu não quero perder a oportunidade de deixar algumas mensagens que me parecem importantes.
Jornalista Óptimo! Pode começar por onde quiser.
Economista O relacionamento entre as duas maiores civilizações mediterrânicas, a guerra do Iraque, a invasão espanhola de Portugal, o caso de Olivença.
Jornalista Vamos equiparar Bagdad e Olivença?
Economista Se quiser . . .
Jornalista Como é que havemos de o fazer?
Economista Fazendo uma leitura integrada de ocorrências aparentemente desconexas.
Jornalista Ah! Isso pode ser interessante, quanto mais não seja numa perspectiva académica . . .
Economista Muito bem: a abordagem académica fica facilitada se nos referirmos a filósofos e teólogos.
Jornalista Quais?
Economista Emmanuel Kant, al-Wahhab e al-Banna
Jornalista Bem: Kant é conhecido mas quem são esses dois com nomes árabes?
Economista Já lhe digo mas, primeiro, quero recordar-lhe uma ideia de Kant que ele expressava por volta de 1780 na sua cidade de Königsberg, na Prússia Oriental, a propósito do iluminismo e que era sensivelmente a de que o homem só alcança a felicidade pela exploração de novas ideias. E não há dúvida de que foi assim que a nossa civilização arrancou para um progresso como nunca a Humanidade antes vira.
Jornalista Realmente, não me parece que seja esse o cenário dos árabes.
Economista E não lhe parece muito bem porque foi por aquela mesma época que o teólogo islâmico al-Wahhab, vivendo na península arábica, disse qualquer coisa parecida com a minha é a última interpretação do Corão e quem ousar novas interpretações mesmo pela simples tradução é de imediato condenado à morte.
Jornalista Então o mundo árabe parou aí?
Economista O mundo árabe, não sei; o islamismo sunita, sim; o xiismo continua a evoluir e nós no Ocidente andamos muito confundidos com o radicalismo de uns e outros.
Jornalista Quem é mais radical?
Economista Entre uns e outros venha alguém que escolha mas recordo-lhe que um dos conflitos mais acesos entre eles é o do estatuto da mulher. Ambos têm a certeza de que a mulher é um ser inferior mas lá pelo meio há uns tradicionalistas (sunitas) que vão ao ponto de afirmar que a mulher não tem alma . . . E matam-se uns aos outros por causa de coisas desse género . . .
Jornalista Mas agora já não se matam só uns aos outros; já nos matam a nós.
Economista Pois é precisamente aí que entra o outro que se chamava al-Banna e que viveu há relativamente pouco tempo: nasceu no Egipto em 1906 e foi assassinado em 1949. Esse fundamentalista (sunita) dizia coisas simpáticas do género:É da natureza do Islão dominar, não ser dominado, impor a sua lei a todas as nações e fazer alastrar o seu poder ao planeta inteiro. Mas se as coisas se ficassem por um proselitismo deste género, ainda poderíamos ir convivendo com ele mas o pior é quando ele afirma que O punhal, o veneno e o revólver são as armas do Islão contra os seus inimigos. E quem são os inimigos? Todos os que não forem islâmicos. Como vê, estamos é pega com essa rapaziada.
Jornalista Bem à pega, pelos vistos. E acha que é esse tipo de ideias que faz com que eles andem por aí a fazer terrorismo ou será por causa da guerra no Iraque?
Economista A guerra no Iraque é uma consequência; a causa está na filosofia.
Jornalista Mas concorda com a guerra no Iraque?
Economista Acho que o Presidente Bush II errou a pontaria mas duvido que pudesse fazer coisas diferentes das que vem fazendo.
Jornalista Como assim? Mentindo?
Economista Não tenho acesso às informações dos Serviços Secretos e, portanto, não jogo com o baralho todo.
Jornalista Não joga com o baralho todo?
Economista No sentido específico em que não disponho de mais informação do que a que é divulgada pelos órgãos de comunicação; não no sentido da frase idiomática. Mas repare que, eventualmente, tanto o Presidente Bush II como o Primeiro-ministro inglês podem ter sido enganados pelos respectivos Serviços Secretos. Se Bush e Blair fossem os autores da mentira, não acredito que não tivessem preparado uma fuga do género de fazerem aparecer as tais armas de destruição maciça. E não foi isso que sucedeu: eles devem ter sido apanhados a mentir com base em informações erradas que lhes foram dadas e não tiveram qualquer hipótese de arranjar uma saída airosa.
Jornalista Mas que saída airosa?
Economista A continuação da mentira que tivessem começado fazendo aparecer as tais armas que não havia maneira de aparecerem. Mas repare que tudo isto são meras especulações por quem não tem acesso a informações mais classificadas do que as que aparecem nos jornais todos os dias.
Jornalista Mas, então, qual foi o erro de pontaria?
Economista A origem do terrorismo parece estar no Paquistão e no Sudão, conforme Bernard Henri Levy que investigou a morte do jornalista americano Daniel Pearl. Mas nesses sítios não há petróleo . . .
Jornalista Então, volto a perguntar: qual foi o erro de pontaria?
Economista O caldo entornou-se quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait e mexeu nos interesses americanos que lá estavam instalados. Aí, foi a primeira guerra do Golfo. Reposta a situação no Kuwait e dois Presidentes americanos mais tarde, eis o 11 de Setembro em Nova Iorque a justificar uma retaliação violenta. Mas no Paquistão está Musharraf a apertar com os fundamentalistas e a fazer o papel do Ocidente enquanto o Sudão está envolvido numa guerra de secessão que infalivelmente o vai dividir em dois Estados: um árabe e outro negro. Não vale a pena estar agora a mexer mais nessa panela que há-de implodir por si própria com as piores consequências para os árabes e com os negros a receberem a simpatia internacional. Portanto, restavam as jazidas de petróleo do Iraque e foi aí que se arranjou um bode expiatório.
Jornalista E acha justo?
Economista Mas no meio disto tudo onde é que está a justiça? No ataque às torres gémeas do World Trade Center? Em Atocha?
Jornalista Então onde é que vamos parar?
Economista Não faço ideia mas insisto em que o Iraque foi um erro de pontaria porque, pelos vistos, não terá nada a ver com armas de destruição maciça, o terrorismo internacional parece ter outras sedes mais importantes e derrubou-se um fulano temido pelos cleros sunita e xiita que agora estão soltos para levarem por diante a filosofia de al-Wahhab e al-Banna. Agora vai haver mais um país a regressar ao obscurantismo medieval, mais um potencial alfobre do terrorismo contra os inimigos do Islão. O alvo falhou muito e é a um cenário muito mau que corremos o risco de ir parar.
Jornalista Mas ficou o petróleo . . .
Economista . . . a 54 dólares o barril.
Jornalista E nesse aspecto, onde vamos parar?
Economista Julgo que o barril do petróleo só baixará depois de cessarem os custos com a guerra no Iraque. E nessa altura não sei se não aparecerá outro pretexto qualquer para manter as cotações em níveis elevados. É claro que estas cotações que os jornais referem são spot e são relativamente poucos os aprovisionamentos que se fazem nessa base. A maior parte dos negócios faz-se com cotações muito inferiores, negociadas em futuros. Ou seja, com base em cotações negociadas há tempos a trás, antes destes valores que aparecem agora nas manchetes. Mas o que sucede é que os spots actuais vão de certeza influenciar os futuros e, portanto, é uma questão de tempo para que cheguemos à verdadeira tensão inflacionista. Os aumentos de preços actuais são uma antecipação desses aumentos futuros.
Jornalista Aumentam agora para não aumentarem tudo duma vez só?
Economista Não sei, mas temo que aumentem agora e aumentem depois não em vez de mas em cima de.
Jornalista Não o vejo muito optimista.
Economista O optimismo tem laivos de parvoíce. Apetece-me tomar um chá de menta que é para me ir habituando aos costumes árabes . . . Mas não vou para a assoteia ver o luar.
Jornalista Muito bem, vamos fazer um intervalo.
Lisboa, Outubro de 2004
Henrique Salles da Fonseca