Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

A bem da Nação

HERESIAS - X

GATO POR LEBRE

 

v      “Descontei uma vida. Tenho direito a receber por inteiro a pensão que me foi fixada!” Sim e não, Caro Leitor. Eu explico.

 

v      O regime de pensões de reforma imaginado pelo Estado Novo (em 1935, creio) tinha como beneficiários os funcionários públicos (e não todos) - um lote relativamente reduzido de pessoas. Não demorou muito para que algumas grandes empresas nacionais copiassem o modelo - sem grandes preocupações actuariais, segundo parece (naqueles tempos, as pessoas morriam cedo). Para Estado e empresas, as pensões eram, apenas, umas linhas mais, uns trocos, nas folhas de salários.

 

v      Demografia à parte, este regime misturava dois esquemas pensados para cada um dar resposta a sua coisa:

-        O modelo de redistribuição - as contribuições de hoje pagam as pensões de hoje, as contribuições de amanhã pagarão as pensões de amanhã, e assim sucessivamente, ad aeternum;

-        A cláusula do benefício definido – entrado na situação de reforma, o pensionista sabe, de certeza feita, quanto irá receber de tempos a tempos a título de pensão (e o busílis está precisamente aqui).

 

v      O modelo da redistribuição, sem mais, atribui a cada pensionista o direito a quinhoar no bolo das contribuições futuras. Mas não fixa, nem pode fixar, a dimensão desse bolo – daí que o pensionista nunca saiba com o que contar.

 

v      O mesmo se passa com o modelo alternativo: o de capitalização. Neste, a pensão não é mais que o rendimento nominal gerado por um capital que foi sendo acumulado ao longo dos anos de actividade do agora pensionista - e investido num dado património. Com habilidade e sorte, a rentabilidade deste investimento poderá ser elevada. Em geral, porém, será imprevisível, tudo dependendo das conjunturas que o património atravessar – e o capital, e a pensão com ele, poderão mesmo esfumar-se por má fortuna, ou trapacice de quem o administre.

 

v      Também o modelo de redistribuição assenta num património - não tão óbvio, por ser um património colectivo e imaterial: os fundos que as contribuições futuras proporcionarem. Na realidade, capitalização e redistribuição nada mais são que diferentes maneiras de financiar as pensões de reforma – e em nenhum deles há a certeza absoluta sobre a pensão que será paga.

 

v      No modelo de capitalização, as pensões são completamente  independentes umas das outras – e cada pensionista só depende do que vier a acontecer ao capital que juntou. No modelo da redistribuição, porém, cada pensão depende de:

(i) total das contribuições efectuadas em nome do respectivo pensionista;

(ii) volume das contribuições cobradas (não as devidas, mas as cobradas) no período a que essa pensão respeitar;

(iii) todas as contribuições efectuadas em nome de todos os que cobrem pensões nessa data. Ou seja, um parâmetro (i) invariante e duas variáveis (ii) (iii) dificeis de prever.

 

v      Pelo facto de depender estreitamente da evolução demográfica, o modelo de redistribuição confronta-se com problemas que em nada afectam o modelo alternativo. Por exemplo, como proceder quando, nos primeiros tempos, o bolo a repartir é já substancial, mas os pensionistas são ainda uns poucos, apenas?

 

v      Certamente, não foi a pensar neste problema que as pensões foram fixadas no rendimento (ou quase) que os pensionistas auferiam antes de entrarem na situação de reforma: ao tempo, a pensão era vista como uma benesse e um poderoso argumento de fidelização - um privilégio para a vida a poucos concedido. Mas foi graças a esta regra que o regime de pensões imaginado há quase um século não tropeçou, logo ao começo, em situações embaraçosas.

 

v      E o que se viu durante as décadas de ‘50 e ‘60 foi o excedente financeiro (a diferença entre o total das contribuições e o total das pensões já em pagamento) a ser investido em projectos ditos de interesse nacional (o Plano Nacional de Barragens Hidroeléctricas, a Tabaqueira, etc.). Ou seja, desde cedo ao modelo de redistribuição foi acoplado o modelo de capitalização - mas não a nível individual.

 

v      Estes dois modelos têm ainda algo mais em comum: não sobrecarregam o OGE. Mas, para memória futura (já que são muitos os que entre nós querem ver substituída a redistribuição pela capitalização), algumas diferenças também:

-        Na capitalização, o património que proporciona a pensão pode desaparecer em vida do pensionista (um contratempo, como é bem de ver) - o que não acontece no modelo alternativo, em que o poder de exigir e cobrar as contribuições não se gasta com o uso;

-        Na capitalização, as contribuições podem ser obrigatórias ou voluntárias (frequentemente, só uma contribuição mínima é obrigatória) – em redistribuição, porém, as contribuições são, à partida, obrigatórias (e raramente se permitem contribuições voluntárias);

-        Na capitalização, a pensão é paga com o que os investimentos feitos renderem – enquanto que na redistribuição, o esforço de pagar as pensões recai directamente sobre a população activa (é uma transferência de rendimento directa da população activa para os pensionistas);

-        Na capitalização a Dívida Pública de taxa fixa poderá dar uma aparência de certeza nominal à pensão (sempre que o Estado devedor não caia em incumprimento, nem modifique a seu bel prazer o modo como essa dívida será servida) – questão que não faz qualquer sentido colocar na redistribuição;

-        Na capitalização a pensão é especialmente sensível às medidas de política monetária – ao passo que, na redistribuição, a pensão é determinada, simultaneamente, pela evolução da estrutura demográfica e dos rendimentos sobre os quais as contribuições são liquidadas.

 

v      É claro que a ideia inicial era prolongar pelo período da reforma dentro o rendimento (mais tarde, o rendimento disponível) que o pensionista tinha auferido enquanto activo (o tal privilégio) - e isso nem a capitalização, nem a redistribuição podem garantir seja em que circunstância for. Ou seja, nenhum destes modelos de financiamento confere a quem quer que seja uma pensão previamente determinada (dito de outro modo, um benefício definido).

 

v      Daí, não ter razão, Leitor: tem direito a uma pensão, sim, mas não a esta pensão (benefício definido).

 

v      A confusão primeva entre pensão e rendimento auferido pelo pensionista quando no activo fez com que a cláusula do benefício definido fosse vista como inerente ao modelo de redistribuição – uma cláusula mais entre tantas outras. Por esses dias, o seu verdadeiro alcance passou completamente despercebido.

 

v      Na realidade:

(i) consubstanciava uma garantia que o esquema de financiamento só poderia honrar enquanto o referido excedente financeiro (ver mais acima) fosse positivo (o que exigia evoluções demográficas hoje consideradas improváveis);

(ii) criava expectativas que só o Estado, com o seu poder ilimitado de tributar, poderia satisfazer.

 

v      Ao longo dos últimos anos, sucessivas revisões e acertos no modo de financiar o actual regime de pensões capricharam em deixar  intacta a cláusula do benefício definido (ainda que fossem reduzindo o respectivo montante) – quando os problemas não estavam no modo como as pensões eram financiadas, mas na garantia (o benefício definido) que, de maneira insensata, tinha sido subscrita.

 

v      E subscrita assim, como quem não quer a coisa, quando a subscrição de uma garantia pelo Estado tem formalidades apertadas – que, no caso, nunca foram tidas em conta. E a questão fulcral é esta: o regime de pensões goza, ou não, da Garantia do Estado?

-        Se não goza – Caro Leitor, foi enganado. Tem direito a uma pensão, sim, mas variável. Reclame, recorra aos tribunais, exija responsabilidades a todos aqueles que têm alimentado o seu engano durante todo este tempo, mas deixe o cidadão pagador de impostos em paz;

-        Se goza - o Governo só tem de honrar esta, como todas as demais Garantias do Estado, ou repudiá-la. Mas, se a repudiar, declarada ou encapotadamente, que tenha em atenção as cláusulas de incumprimento cruzado (cross default) que habitam em quase toda a Dívida Pública Externa. É que, de um momento para o outro, todos esses empréstimos podem tornar-se imediatamente exigíveis.

 

v      Políticos ignorantes, legisladores incompetentes e governantes ineptos arranjaram-nos este lindo sarilho, foi o que foi.

 

PS: Que nos sirva de modesto consolo: neste sarilho temos boa companhia, por essa Europa fora.

 A. Palhinha Machado

Janeiro de 2013

2 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2013
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2012
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2011
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2010
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2009
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2008
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2007
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2006
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2005
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2004
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D