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A bem da Nação

HISTÓRICO SERTANEJO GOÊS E APÓSTOLO DA ETIÓPIA

 

 

I

 

Embora desconhecido da maior parte dos portugueses, quiçá mesmo dos seus conterrâneos goeses, este ilustre filho de Goa fez-se notável pelas suas virtudes e pelo seu saber, no final do século XVI e dos primórdios do século XVII, como um destemido sertanejo e um grande evangelizador ao serviço do Padroado Português do Oriente e da Igreja de Roma nas terras do lendário Prestes João da Etiópia, uma nação cristã da seita copta, implantada no interior do Nordeste Africano.

 

Em Maio de 1944, na histórica cidade portuária de Mombaça, no Quénia, numa palestra afirmara a excelência dos padres goeses ao serviço da Igreja de Roma (cf. meu livrinho “Goans Abroad and in British Lands! (A study, Mombasa-Kenya, 1944, page 20):

“These Goan priests and Padre Belchior da Silva, brâmane de Goa, of Abyssinian fame, are recorded facts which deny and refute much that is said everywhere disparaging Goan priests. French historians represent him as someone who revived the Catholic Faith in Ethiopia which had fallen into decay. He acted as the Vicar-General of the Abyssinian Apostolate (1603/04) under Dom Frei Aleixo de Menezes, Archbishop Primate of Goa”.

 

Antes de descrever as actividades do citado padre goês, urge dizer algo sobre as relações de Portugal e da Etiópia. De facto, a saga da penetração portuguesa nas terras de Prestes João, lendário grande suserano cristão nos séculos XVI e XVII, em constantes lutas entre moiros (turcos, egípcios e africanos) e aguerridos cristãos (etíopes e portugueses) com derrotas e vitórias para os combatentes.

Em Julho de 1541 Dom Cristóvão da Gama, filho do ínclito navegador Dom Vasco da Gama, fora encarregado de defender os etíopes cristãos ao comando duma Força Expedicionária de 400 homens dos melhores da Armada, provido de oito peças de artilharia, 100 mosquetes e muitas munições. Após uma penosa marcha no sertão africano sem caminhos nem pontes ou pontões, as forças portuguesas espantosamente galgaram montes e vales, atravessaram rios e lagos, durante oito longos e cansativos meses e finalmente juntaram-se às forças defensoras da Rainha Reinante da Etiópia chamada Sambla Vangal. De Janeiro a Abril de 1542 travaram ferozes combates e venceram as forças inimigas, ferindo o seu chefe Imã Ahmad. Os moiros voltaram a combater em Agosto de 1542 com forte reforço recebido do paxá ZABID: 900 turcos, muitos espingardeiros e 19 bombardas. Infelizmente Dom Cristóvão ficou muito ferido no combate em Setembro e ficou surpreendido na fuga pelos moiros, tendo sido preso e levado ao arraial do Imã Ahmad, que lhe fez sofrer muitas afrontas e, por fim, cortou-lhe a cabeça com suas próprias mãos. Assim morreu o herói português com apenas 26 anos de idade!

A morte de Dom Cristóvão foi posteriormente vingada pelas forças luso-etíopes, que desbarataram a mourama dando a morte ao citado Imã de Zoilá. O Negus etíope CLÁUDIO jamais cedeu às pressões portuguesas de fazê-lo aderir à Igreja de Roma, abandonando a seita herética copta. Em 1557 vieram de Goa quatro fustas com soldados portugueses, além do Bispo Dom André de Oviedo e cinco jesuítas. Foram recebidos na Corte Imperial, porém encontraram o Negus obstinado em não aceitar o Rito Latino por si e pelo seu povo.

 

Falecido o suserano CLÁUDIO, seguiu-lhe no trono o irmão ADAMAS SEGUED que perseguiu os cristãos do Rito Latino (religiosos e civis) e proibiu que as etíopes casadas com portugueses seguissem o Rito Latino. Proibiu ao Bispo Dom André a pregação da Doutrina Romana, depois meteu em prisão, mandando soltá-lo passado algum tempo. Em 1577 faleceu o Bispo Dom André, e durante 20 anos as tentativas portuguesas de demover o soberano etíope não lograram efeito. Nesse intervalo mandaram de Goa três padres europeus para missionar. Mal chegados e descobertos, dois deles foram metidos em prisão e o terceiro simplesmente martirizado.

 

Estava-se em 1598 e a Providência Divina inspirou o Pe. Belchior da Silva, um Brâmane de Goa, que voluntariou-se para ir missionar a minoria cristã do Rito Latino na Etiópia. O Arcebispo de Goa e o Governo deram-lhe algum apoio, garantindo-lhe a passagem e a alimentação do porto indiano de Baylur, nas cercanias de Diu, até aos portos do Leste Africano dominados pelos portugueses (Moçambique, Quíloa, Mombaça e Melinde).

II

 

O missionário Pe. Belchior da Silva saiu de Goa sem intérpretes, sem auxiliares, sem conhecer o árabe e o ki-swahili, sem agasalhos e sem mantimentos, sem armas, sem o generoso apoio das Sociedades Científicas e de Empresas Comerciais, apenas munido de Breviário e dum Crucifixo e, mal chegado a Melinde, pôs-se a palmilhar o sertão africano com suas feras e seus canibais, com suas serpentes e seus mosquitos, até penetrar nas terras etíopes, após oito meses de penosa caminhada (Maio de 1598).

 

Sua tez morena ou bronzeada foi talvez uma grande ajuda, vendo-se nele um mensageiro de Cristo e de sua Doutrina e não um agente do domínio europeu. Na Etiópia dedicou-se durante uma década à evangelização, à recristianização dos etíopes, à sua conversão ao Rito Latino, sempre batizando-os, casando-os e confessando-os e sacramentando-os segundo o Rito Latino, provendo a eles novas igrejas, escolas de catequese, hospitais e centros de apoio social, limitado na época. Foi verdadeiramente um Apóstolo de Cristo que, por modéstia e fidelidade à Arquidiocese de Goa, recusou a dignidade episcopal que lhe fora oferecida. Ignora-se o ano do seu falecimento.

 

A extensa e penosa caminhada a pé do missionário goês emparceira-o ao lado dos cantados e decantados exploradores do sertão africano no século XIX, numa travessia sem um auxiliar ao lado, sem qualquer patrocínio de sociedades científicas, de missões militares, de empresas industriais e comerciais. Não é bazófia afirmar que ele foi verdadeiramente primus inter pares em relação aos exploradores europeus do sertão africano do século XIX, em seguida mencionados na ordem cronológica dos seus respectivos anos de nascimento. Ei-los:

 

David Livingstone (1813/73) - explorador e médico, descobridor dos lagos do Leste Africano e das chamadas Cataratas Vitória;

 

Henry Morton Stanley (1841/1904) – explorador anglo-americano, repórter-jornalista e político inglês, descobridor de montanhas, lagos e rios no interior da África, especialmente do Rio Congo, originando a evocação do seu nome na criação de Stanleyville do Ex-Congo Belga;

 

Hermenegildo de Brito Capelo (1841/1917) – Oficial da Armada Portuguesa, explorador do sertão africano, juntamente com Roberto Ivens e Serpa Pinto na histórica travessia de Angola a Moçambique;

 

Verney Lovett Cameron (1844/94) – Oficial da Marinha Naval Inglesa, ao serviço da Royal Geographic Society of London e ainda explorador do sertão africano, do lado oeste do Lago Tanganhica ao porto de Benguela, em Angola, em 1874;

 

Alexandre Serpa Pinto (1846/1900) – explorador com Roberto Ivens e Brito Capelo do Centro de África (1877). E, em travessia solitária, do Bié-Angola ao Rio Zambeze (1678), às Cataratas Vitória, ao Kalahari e às incipientes urbes sul-africanas de Pretória, Pietermaritzburgo e Durban (1879);

 

Roberto Ivens (1850/98) – Oficial da Marinha Portuguesa (Índia e África), notável explorador e Chefe da Expedição da travessia do Continente Africano e co-autor do relato da viagem «De Angola à Contracosta» (1886).

 

III

 

Padre Belchior da Silva indubitavelmente constitui a glória de Portugal, quer como pioneiro explorador do sertão africano, quer como insigne evangelizador ao serviço da Igreja de Roma, do Padroado Português do Oriente e da Arquidiocese de Goa. Por modéstia recusou o Bispado que lhe fora oferecido, mas aceitou o cargo de Vigário-Geral do Apostolado da Abissínia (1603/04).

 

Brevemente em 2003-2004 decorrerão quatro séculos sobre a criação do citado Vicariato-Geral do Apostolado da Abissínia. Portanto as Associações de Goeses radicados em Portugal, com ajuda das Universidades e das Instituições Históricas e Culturais Portuguesas, deverão evocar esta efeméride em homenagem ao missionário Pe. Belchior da Silva.

 

Não sei se Deus me permitirá viver até 2004 e presenciar este grande acto de homenagem cívica a alguém que muito prestigiou Portugal e o Estado da Índia. Fica aqui uma sugestão: que o nome do Pe. Belchior da Silva seja atribuído através do país às artérias das urbes e vilas portuguesas. 

 

 

 Domingos José Soares Rebelo

 

In revista ESBOÇOS/ACAGDD Coimbra, Ano IV, Nº44 de 01.01.2002

  

Fontes consultadas: GEPB - Grande Enc. Port. e Bras.,Vols.1 e 2

DELP - Dic. Enc. de Ling. Port., Vols. I-II, 1992, ed. de R. Digest

Fonte sugerida: “Ethiopia Oriental & Varia Historia de Coisas Notaveis do Oriente”, por Frei Pe. João dos Santos, religioso dominicano, Évora, 1609 ou sua versão em francês

 

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