O MEU AVÔ E SALAZAR – 10
Seis meses decorridos sobre o rocambolesco 26 de Agosto, reconhecia-se em todos os quadrantes que a ordem pública era um facto. As classes activas tinham boas razões para estarem satisfeitas. O pior já passara, mas sentiam agora a angústia que a mãe de Napoleão expressou no seu famoso “pourvu que çá dure”. Era preciso garantir que çá dure.
A “direita” europeia revelara ao longo do século XIX, em vários países, tendência, que se acentuaria na terceira década do Século XX, para recorrer a figuras carismáticas capazes de suprirem pelas suas qualidade arrebatadoras a falta do apelo popular dos programas políticos conservadores. A sociedade portuguesa, para sua tranquilidade, pedia agora também um chefe-garantia. A ninguém escapava a trama que neste sentido se desenrolava nos corredores dos Ministérios e nos quartéis, na circunstância equiparados a centros de coordenação política. Exigia-se do governo um papel cada vez mais político e cada vez menos administrativo e militar e Domingos de Oliveira não tinha a menor dúvida quanto à sua indisponibilidade para o desempenho de um tal papel.
O professor Salazar, que já tinha estabelecido a sua reputação como “mágico das Finanças”, demonstrara também, ao longo do percurso, notável virtuosismo no uso da retórica política. Domingos de Oliveira servia-se do exemplo enquanto o Prof. Salazar servia-se da palavra e nisto consistia a superioridade do seu armamento político. O exemplo é um meio de comunicação rígido, não permite a menor margem de manobra, enquanto a palavra é maleável, dúctil e, ainda que menos fiável, muito mais irradiante. O público, sobretudo o latino, é infinitamente mais sensível ao que se diz e como se diz do que ao que se faz e como é feito. Para os portugueses, a civilização não começou por ser o verbo; a civilização é o verbo.
O Prof. Salazar não era propriamente um arrebatador, como fora Sidónio, mas, inegavelmente, era um mesmerizador. Oriundo do Seminário, Salazar sabia que a linguagem, mais do que instrumento de comunicação, é um meio de sedução. Vindo também da Universidade, sabia ainda mais, e como poucos, envolver promessas, evocações e mistérios sob uma capa de erudição e classicismo que empresta autenticidade e autoridade a tudo o que dizia. O público respondia com vivo e crescente interesse a esta nova forma de encantamento. Muitos lançavam-se à adivinhação do verdadeiro sentido das palavras pronunciadas; outros deleitavam-se com o requinte formal do estilo; mas, sobretudo, o que comovia a todos, ou quase todos, era o sentido messiânico embalador do discurso: “Portugal poderá, se quisermos, ser uma grande e próspera nação”. Como? Não se explicava, afirmava-se. Sacrificava-se a plausibilidade ao sortilégio. Quem tal jurou sabia que o público prefere o sonho à realidade. O chefe, o encantador do povo, estava ali.
Segundo a versão familiar, apresentado à Nação o projecto da nova Constituição (28 de Maio de 1932) e depois de ouvida a opinião das Forças Armadas, Domingos de Oliveira convidou o Prof. Salazar a explicitar a sua posição quanto à Presidência do Ministério. Salazar admitiu, ainda que com polida relutância, estar preparado para assumir a chefia do governo. De comum acordo, ficou decidido proporem ao Presidente da República a dissolução do Ministério. Domingos de Oliveira manifestou na altura o seu desejo de regressar ao comando de tropas.
O General Domingos de Oliveira, acompanhado pelo capitão Costa Runa e pelo Dr. Pais de Sousa, à saida do Palácio de Belém. Após reunião com o Presidente Carmona, Domingos de Oliveira demitiu-se do cargo de Chefe do Governo
Alguns historiadores apresentam porém versão diferente. Ao que se sabe, havia duas correntes nas Forças Armadas: a que queria a Constituição e passagem do poder aos civis e a que queria prolongar a ditadura militar. Na consulta feita em Maio às Forças Armadas o Exército pronunciou-se a favor da transferência do poder para os civis, leia-se Prof. Salazar, confirmando assim o desejo já eloquentemente expresso na campanha promovida pela oficialidade para que fosse atribuída a Grã Cruz da Torre e Espada ao ministro das Finanças. A Marinha porém pronunciou-se contra, atitude que ditaria a saída do governo do almirante Magalhães Correia. É natural que tenha subsistido da parte deste brilhante militar uma certa amargura que deixou transparecer em confissões feitas a seu genro, o escritor Joaquim Paço d’Arcos, e a que este daria publicidade nas suas Memórias. Atribuem-se ali culpas pelo afastamento dos militares ao despreparo político de Domingos de Oliveira. Franco Nogueira, com a sua proverbial (e justificada) aversão à intervenção dos militares na política, atribui este juízo ao Prof. Salazar. A versão do biógrafo de Salazar torna incompreensível a atitude do mesmo quando este, sempre parco em elogios, louva no acto de posse “a inteligência com que Domingos de Oliveira conduziu o seu governo e os avanços que realizou”.
Veríssimo Serrão nota estes e subsequentes aspectos o que o leva a rejeitar categoricamente a versão Paço d’Arcos-Franco Nogueira. Yves Leonard, no seu “Salazar e o Fascismo” afirma que, na ocasião, tanto Domingos de Oliveira como Lopes Mateus formularam reservas. A afirmação é feita sem especificação e atribui-se a fundamentação a Fernando Rosas, mas este também nada elucida sobre a natureza das supostas reservas.
A versão familiar afigura-se por isso a mais provável: a transferência de poderes não foi conflituosa; Domingos de Oliveira agiu dentro do consenso da oficialidade de Exército, estando ele também convicto que a unidade e coesão das Forças Armadas ficaria mais bem assegurada com os militares fora da política. do seu ponto de vista pessoal, e segundo o afirmou, o papel do Exército na condução da vida pública terminou no momento em que foi criada a oportunidade para “dar o direito (de governar) a quem tem razão”. Competia ao presidente eleito - e não ao Exército - decidir quem tinha razão.
Num álbum fotográfico relativo a este período e inteiramente legendado por si, o meu Avô escreveu pelo seu punho: “5 de Julho de 1932 - Entrega do penacho. Enfim LIVRE!!! 29 meses e 14 dias”. A alegria que sentiu ao voltar ao comando das tropas ficou bem expressa quando, em Maio desse ano, convidado a presidir ao júri do Campeonato do Cavalo de Guerra, apresenta-se em Torres Novas com a sua montada e, na frescura dos seus 61 anos, faz a galope largo o duro percurso da prova, antes de declarar aberto o concurso.
Que ele não tenha gostado da missão que lhe atribuíram depreende-se também do silêncio que guardou sobre esse tempo. Era como se aqueles 29 meses e 14 dias não tivessem feito parte da sua vida. Foi um tempo emprestado aos outros. Muito mais tarde porém, percebemos que a experiência não estava totalmente esquecida. Já perto do final da sua vida, chamou os netos e disse-lhes “nada tenho para vos deixar a não ser um conselho: nunca se metam em política”.
(continua)
Luís Soares de Oliveira