BZZ… BZZ…CORO DAS ERÍNIAS
Tempo de reler “Les Mouches”. Uma peça de teatro empolgante de Sartre, a sua primeira, aliás, escrita em 1943. Na riqueza dos referentes míticos e sua adaptação ao contexto da altura, de resistência ou de submissão à ocupação nazi, nos simbolismos dos gestos, na filosofia de responsabilização e assunção dos actos próprios – Orestes – livremente, sem necessidade de um deus omnipotente e manipulador, ou, pelo contrário, de submissão à regra imposta pela convenção – Electra.
A regra – o remorso – fora imposta em Argos pela rainha – Clitemnestra, viúva de Agamémnon, que ela assassinara, no seu regresso de Tróia, juntamente com Egisto, seu amante, como vingança por aquele ter sacrificado a filha de ambos –Ifigénia – para obter ventos favoráveis no embarque das naus para Tróia.
Uma intriga em torno, pois, de uma vingança – a de Orestes assassinando a mãe – Clitemnestra – e o padrasto Egisto, responsáveis pela morte de seu pai Agamémnon, e o entregaram, com três anos, a uns mercenários, e reduziram a irmã Electra a uma infeliz Gata Borralheira rancorosa. Tais crimes de assassinatos de parentes constituiriam a “maldição dos Átridas”, nome proveniente do primeiro dos seus assassinos – Atreu, pai de Agamémnon e de Menelau (este, marido da bela Helena, irmã de Clitemnestra, raptada por Páris…). O nosso Camões o cita, no episódio de Inês de Castro, LUS., III, 133:
«Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes
Quando os filhos por mão de Atreu comia.»
Um I Acto de 6 Cenas, constituindo uma espécie de Exposição, com pistas indiciando o Conflito - o II Acto com um Primeiro Quadro com 4 Cenas, um Segundo Quadro com 8 Cenas – o III Acto, o Desenlace, com 6 cenas, numa estruturação equilibrada.
Um I Acto com Orestes procurando o palácio da rainha, acompanhado do Pedagogo, um Júpiter que os segue e com eles trava diálogo, tentando induzir Orestes/(Filebo) a voltar atrás nas suas intenções de descoberta e provável vingança, nesse dia da festa dos mortos, com estes empestando a cidade e perseguindo, por meio das moscas –Erínias – os habitantes de Argos, como retaliação pelos seus crimes – (o primeiro dos quais, o de Clitemnestra e Egisto, praticado quinze anos antes, e forçando os habitantes a um programa de expiação e remorso generalizado), representados pelas velhas de negro fazendo oferendas e libações à estátua de Júpiter, sendo uma delas interceptada por Júpiter, durante a conversa deste com Orestes e o Pedagogo, a qual justificará esse viver de expiação e remorso imposto desde o crime cometido pelos reis de Argos, num seguidismo de rebanho dócil, conveniente a Júpiter, avesso à liberdade humana.
Este tentará induzir Orestes a retirar-se de Argos, sugerindo o crime possível de assassínio vingativo da rainha Clitemnestra, caso ele fosse o jovem expulso por Egisto, quinze anos antes, revelando, assim, a pista de que é alguém que sabe e não se deixa enganar. O encontro de Orestes, sob o disfarce de Filebo, com a revoltada Electra, que espera o milagre do regresso do irmão, para repor a ordem, e seguidamente com Clitemnestra, rainha amarga perseguida pelo remorso que impôs na cidade, decidem-no a ficar, contrariamente às tentativas do Pedagogo para o afastar das ambições, retomando as viagens e os estudos libertadores do homem.
O Acto II, num Primeiro Quadro em torno da expiação, com cenas caricatas da multidão nos seus preparativos para a festa, o Grande Sacerdote diante da caverna apelando aos mortos para se erguerem, no meio da putrefacção, para virem atormentar os vivos e roê-los até aos ossos, Orestes horrorizado pensando intervir, contrariado por Júpiter, Egisto pedindo perdão e piedade ao lembrar o seu crime, tal como a multidão que expõe os seus crimes, Electra que aparece provocatória, vestida de branco, lembrando as cidades onde há alegria, apelando para seu pai Agamémnon e sua irmã Ifigénia, para que fiquem silenciosos, ao contrário dos outros mortos, provando que estão com ela, em dança sacrílega que vai provocar, a par do entusiasmo das mulheres jovens, a raiva das velhas e a ira castigadora de Egisto.
A Cena IV, nos degraus do Templo, é a cena do reconhecimento (“anagnórise”), após uma primeira recusa de Electra, convencida de que fala com o jovem Filebo, Electra confiando finalmente no irmão, disposta a colaborar com ele, como salvador do povo e vingador do crime.
O Segundo Quadro, em torno de Egisto e do seu cansaço de viver, do seu assassínio por Orestes, ante a alegria de vingativa Electra, o recuo desta perante a decisão de Orestes de matar a Mãe, o começo do arrependimento de Electra, o seu repúdio pelo irmão, que assume o seu acto em liberdade, ao contrário de Electra, que se deixa perseguir pelas moscas, as Erínias, as deusas do remorso.
No III Acto, no Templo protector de Apolo, os dois irmãos dormem rodeados pelas Erínias ameaçadoras – representantes do destino (“anánkê”). Um Júpiter chantagista pretende atrair para si a devoção do irmão e da irmã, mas enquanto esta cede ao remorso, repudiando o irmão, integrada no rebanho, este responde com a altivez do ser livre, mas definitivamente só – “só como um leproso” – dirá Júpiter.
Como o “tocador de flauta”, dirá ele á multidão de Argos, que conduziu os ratos para o mar, para limpar a cidade, e com eles se afogou, ele conduzirá para o mar as Erínias que o espreitam à beira do templo de Apolo para o perseguirem, assumindo desse modo, com a sua morte, a sua liberdade de salvar o povo de Argos da maldição do remorso, e de os conduzir à consciência da responsabilidade dos actos próprios, qual Cristo deixando-se imolar para Redenção dos pecados dos homens, imagem, em todo o caso, estranhamente contrária ao pensamento ateu sartriano.
É tempo, pois de relermos “Les Mouches”. Pela consciência de se ser livre em responsabilidade. E afinal, homens livres sempre os houve, Cristo foi um deles. Assumiu e pagou. Como Orestes. Como Pigmalião.
Mas esses pertencem ao mito, não é deles que reza a história. Qualquer Napoleão se julga livre, qualquer Hitler, qualquer Mao, e mais modernamente, qualquer… São os que fazem pagar. E nunca assumem. Menos ainda se arrependem, eles próprios Erínias vorazes que reduzem a cidade a um coro de gritos e de maldições contra o seu bzz bzz ensurdecedor de explicações ou justificações de embalar.