VIAGEM NA MINHA TERRA – 1
Fui e vim há dias de boleia a Mortágua no carro do Luís Oliveira, editor dos livros de Tomás da Fonseca, o meu Avô. Conduzidos com grande segurança pelo Celso, responsável pelo serviço de distribuição da ANTÍGONA – EDITORES REFRACTÁRIOS, conversámos descontraidamente durante os quinhentos e tal quilómetros que nesse dia o carro percorreu por nós.
Com um curriculum de 272 títulos já editados, o Luís Oliveira começa por ler cada obra e só depois decide se a publica ou não pelo que esse método lhe dá para encher uma viagem com ditos, conceitos, anedotas e muita risota. Na volta, à noite, provou ser método excelente para evitar que ao condutor pesassem as pálpebras e o carro se aproximasse em excesso das bermas.
Uma das obras que mais citou, editou-a ele em 1980 por tradução do original francês e, apesar de ter apenas 153 páginas, inclui a totalidade das obras de três autores de que eu nunca ouvira falar: Cravan, Rigaut e Vaché.
Mesmo referindo apenas as partes que poderiam ser contadas à minha mãe ou à minha sogra, resta matéria mais que suficiente para ficarmos bem dispostos. E isto, quand même et malgré tout, tratando-se de livro que se diz do humor negro. Mas eu creio que se trata sobretudo duma sucessão de humor negro e non sense que nos deixa baralhados umas vezes e outras em que damos por nós fascinados pelas perspectivas em que nunca pensáramos. Mas nós, os que nos cremos sensatos, temos a fundada esperança de acabar os nossos dias de modo muito mais curial do que estes três bons-vivants, o suicídio. Sim, não deve ser fácil viver durante muito tempo alternando, sem soluções de continuidade, entre o non sense e o humor quase sempre negro. Até porque, como diz o Luís Oliveira, «os desejos, quando não organizados e defendidos, enfraquecem, estiolam e morrem. Um homem sem desejo é um homem morto; o suicídio é a mera verificação do óbito».
E quem eram estes três «magníficos»?
Cravan
O poeta com o cabelo mais curto do mundo, inglês de origem, parente de Óscar Wilde de quem se supôs ser filho, boxeur para combater o tédio, disse de André Gide o que o escritor lhe perdoou por razões não totalmente esclarecidas.
Editou entre 1912 e 1915 os cinco números da revista «Maintenant» que expunha e vendia ao longo dos grands boulevards de Paris num carrinho que fora de assador de castanhas. Isso, «por ódio às livrarias abafadiças onde tudo se confunde e tudo cai aos bocados ainda em estado novo».
Irreverente, insubmisso e totalmente desenquadrado do formalismo social, disse dos pintores modernistas que no Inverno de 1914 se apresentaram na Exposição dos Independentes o que muitos de nós, os socialmente enquadrados, pensamos mas não dizemos. Um deleite, o que nos apresenta da página 45 à 58 desta edição.
Dizia ele por essa época que sempre me fez uma enorme espécie como é que os professores de pintura, salvo no caso de ensinarem desenho à vista a um serralheiro, têm podido, desde que o mundo é mundo, topar com um aluno que seja. Goza-se com os clientes das quiromantes ou cartomantes e não se arranja um pouco de ironia para os simplórios que frequentam as academias de pintura. Poderá aprender-se a desenhar, a pintar, a ter talento ou génio? (...) Espanta-me que um vígaro espirituoso não se tenha lembrado de abrir uma academia de literatura.
Viera ele hoje ao mundo e veria esses cursos de escrita criativa que por aí pululam a extorquir dinheiro a quem não sabe o que pôr no papel...
Abocanhado com frequência por uma vontade inabalável de nada fazer, escolhe a sua pior poesia para figurar no número especial da revista e que assim reza:
Deitado na minha cama de madraço,
Como um leão na areia,
P’ra qu’a coisa não saísse feia,
Deixei escorregar um braço.
Em resultado de sucessivas inadaptações, escolhe o dia de Natal de 1916 para emigrar para os EUA donde seguidamente salta para o Canadá e para o México onde casa com a poetisa inglesa Mina Loy de quem terá uma filha e onde se dedica a ensinar ginástica. Mas a inadaptação continua e uma certa noite de temporal adentra o Golfo do México num bote e desaparece. Acabada a Grande Guerra, a mulher procura-o debalde por tudo quanto é prisão e hospital em todos os países do mundo. Entrevistada, perguntam-lhe quais os melhores e os piores momentos da vida dela e, sem qualquer hesitação, responde que os melhores tinham sido todos os que estivera com Cravan e os piores todos os que estivera longe de Cravan. BRAVO!
Sobre Rigaut e Vaché tratarei mais logo...
Lisboa, Outubro de 2012