TOMÁS DA FONSECA - Antologia
“RELIGIÃO, REPÚBLICA, EDUCAÇÃO"
Dos netos, o mais novo, andava eu ainda pela mão dos sábios e já os outros, quase em bando airado, caminhavam pela vida fora...
Hoje, se todos vivessem, seríamos praticamente da mesma peara mas naquelas idades bastavam poucos anos para uns serem adolescentes e outros apenas crianças. Eis como pude reter uma imagem do nosso Avô que os meus irmãos e primos viram de modos diferentes.
E é por certo essa imagem que se espera que eu hoje aqui traga, a do homem de família, não o homem público magnificamente retratado no prefácio desta preciosa antologia.
Como todos podem imaginar, leio sempre o que se aproxima de mim que refira o meu Avô e posso testemunhar que este prefácio foi, de tudo o que sobre ele até hoje li, o que mais me agradou (pese embora escrito em conformidade com os interesses comerciais do crioulo brasileiro).
O meu Avô foi uma das pessoas mais eruditas que alguma vez conheci e foi uma das pessoas mais amáveis que alguma vez conheci. Mas também foi de certeza a pessoa mais erudita e amável que alguma vez conheci. Sempre todos soubemos que chegar junto dele era de certeza motivo para ouvirmos uma palavra serena, amável, amiga. Todos gostávamos do seu convívio e era frequente encontrar um pretexto qualquer para promover o sorriso e ter a bondade como instrumento normal da vida. E quando um de nós dizia um disparate qualquer, logo ele acorria com uma risota e com a explicação bem-humorada da expressão correcta.
Certa vez, com toda a família à mesa, perguntei-lhe o que queria dizer aquele «palavrão» que ele tinha dito no “Café Juiz de Fora” ao Dr. Afonso[1] e tentei reproduzir o que saiu quase incompreensível. Ia-se engasgando de riso com o disparate que eu disse e os meus irmãos e primos pensaram que eu tinha ensandecido com palavra tão esquisita. E foi com toda a gente ainda a rir que logo explicou o significado de «correligionário».
Esta bonomia também se traduzia no aviso que transmitia à minha Avó quando à porta lhe tocava alguém que ele não conhecia e se apresentava com certa marcialidade: - Oh Tilde faz a mala! Mandava entrar os «cavalheiros» e esperava que a minha Avó (que se chamava Clotilde e a que ele carinhosamente chamava Tilde) trouxesse a mala para ele levar para uma estadia no «hotel» que gratuitamente a PIDE lhe disponibilizava.
Assim era o meu Avô e isso não consta dos Tratados que sobre ele julgam tudo dizer.
Mas esses Tratados dizem coisas muito verdadeiras e em nada contradizem as histórias de família. Quem não o conheceu pessoalmente pode às vezes imaginá-lo um ferrabrás mas pode ficar tranquilo pois não era nada disso. Contudo, a docilidade pessoal nunca o impediu de publicamente ser assertivo e mesmo contundente.
Só que uma coisa eram as ideias e outra, muito diferente, as pessoas.
Certa vez foi procurado aqui em Mortágua por um Padre holandês e logo tratou de o receber com a cordialidade que lhe era natural. O Sacerdote estava interessado em conhecer a colecção de Bíblias que o meu Avô tinha na sua vastíssima biblioteca mas não conseguiam entender-se facilmente. O meu Avô não falava uma palavra de holandês, o Padre não falava uma de português, o meu Avô estava com o inglês muito emperrado e o francês do Padre estaria em igual estado. Ultrapassados os preliminares por gestos e grunhidos, concluíram que a única língua que dominavam em comum era o latim. E eis que se deliciaram numa longa conversa em latim a que se seguiu uma refeição em que a minha Avó participou mais laconicamente que o habitual.
Mas não vos quero maçar mais com histórias de família; apenas quis transmitir a realidade pessoal do Tomás da Fonseca que conheci, o meu Avô.
* * *
Foi recentemente, quando menos esperava, lendo Rob Riemen no seu livro “Nobreza de espírito” (Bizâncio, 2011), que dei por mim a constatar ser precisamente esse o grande legado que o meu Avô me deixara. Não os bens materiais mas sim o conceito ético e político essencial, a nobreza de espírito, ou seja, a realização da verdadeira liberdade que consiste na busca permanente da verdade e do bem, na encarnação da dignidade humana.
E convenhamos que não pode haver democracia nem sequer mundo livre sem este alicerce moral. A verdadeira liberdade é aquela que permite seguir na busca do padrão absoluto pelo qual o nível da dignidade humana deve ser medido.
Eis o grande ideal que dele herdei.
Mas há mais...
Quem preza a civilização e a vida intelectual olha para a história do século XX (no qual Tomás da Fonseca desenvolveu a sua grande actividade) com verdadeira perplexidade. Quase diria, com estupefacção. Quantos eruditos – académicos, artistas e cientistas – puseram de lado a vida civilizada optando pelo triunfo da mentira, da ditadura, da violência? Quantos deles colocaram as suas potencialidades às ordens do terror? O rol é incontável.
Mas também, quantos os que se recusaram a abandonar a integridade e por isso morreram às mãos dos algozes? Eis outro rol interminável que nos deixa atónitos… E olhando em redor, o que vemos? Vemos exércitos de eruditos que consideram mais importante alcançar a resposta política final do que dizer a verdade e pensar sem preconceitos.
Foi depois da guerra de 1939-45 que Hannah Arendt concluiu que a crise só se transforma em drama quando lhe respondemos com preconceitos. E estes mais não são do que as ideias politicamente formatadas. Em vez de recorrerem à liberdade, recorrem às «cartilhas». Ironicamente, fazem-no em nome da liberdade que, desse modo, não praticam nem sequer, afinal, admitem.
A traição de parte significativa da intelectualidade está na razão directa da falta de capacidade para assumpção das responsabilidades intelectuais. É para esses mais cómodo responderem às questões com soluções politicamente formatadas do que assumirem a integridade que deles seria legítimo esperar. Não passam daquilo a que Thomas Mann ironicamente apelidava de «literatos da Civilização», os que sabem tudo relativamente ao que os outros pensam, mas pouco ou nada acrescentam da sua própria autoria. Para estes, a felicidade não é uma questão metafísica mas sim e apenas um problema político.
Logicamente, arriscam-se a propor soluções baseadas em ideias geradas em contextos completamente diferentes dos que estão na circunstância em observação. É que, se existe algum lugar onde a submissão reina, é seguramente entre os intelectuais politizados. E para cúmulo da ironia, bradam as receitas encartilhadas à mistura com VIVAS à liberdade.
E porquê tanta traição à nobreza de espírito? Sedução do poder, influência, inchaço por ser ouvido e quiçá admirado. Numa palavra, vaidade.
O significado de conceitos imortais como o do bem, do mal, da compaixão, da sabedoria, da justiça, da virtude, raramente é aflorado porque a linguagem actual preza sobretudo os factos que se analisam em função de objectivos que visam o progresso material. Assim, em nome da liberdade, se mata a nobreza de espírito e se abandona a procura da verdade.
Tomás da Fonseca padeceu um bocado à mão dos algozes mas não deixou de apregoar o que considerava ser a verdade e nunca prescindiu da liberdade, por muito que intelectualmente o quisessem agrilhoar. Como ele próprio proclamou em Outubro de 1902 e incansavelmente praticou até ao fim dos seus dias, «procuraremos lançar em cada consciência o gérmen santíssimo do dever para que a árvore do Bem floresça em cada coração. Em vez de infernos sulfurosos, cantaremos a terra gloriosa (...) onde temos a vida e onde temos a morte, na marcha universal dos seres, na evolução dos mundos, de que nós, animais de iniciativa e de protesto, somos ainda e sempre a molécula inteligente e viva» (pág. 51 da obra hoje apresentada).
Enfim, passados todos estes anos que dele apenas me lembro, sou levado a resumir em três palavras a Ética que me legou: eu, tu, ele. «O que é que eu devo fazer a teu favor sem o prejudicar a ele, esse terceiro que eventualmente nem conheço?». E se pusermos a questão no plural – nós, vós, eles – e nos perguntarmos «o que é que nós podemos fazer por vós sem os prejudicarmos a eles, esses terceiros que não estão presentes», então chegamos a outro conceito igualmente agnóstico e alheio às vicissitudes resultantes da ira divina, o Sentido de Estado.
Aí está: Tomás da Fonseca era um espírito nobre que espalhava as suas próprias ideias, não as encartilhadas que lhe quisessem impor.
Eis o meu Tomás da Fonseca.
E passados todos estes anos, que ganhámos com as pelejas por ele travadas?
Seguindo a ordem por que a presente antologia coloca os grandes temas, reconheçamos que desapareceu por completo a quase hierocracia que se vivia em Portugal nos anos da sua juventude e que as matérias da Fé estão hoje muito correctamente colocadas na esfera da intimidade de cada cidadão; a República é actualmente um Regime em que todos somos iguais perante a Lei, em que ninguém vê a liberdade condicionada pelas ideias políticas que professa, em que todos nos empenhamos diariamente no aperfeiçoamento do civismo, em que somos representados por quem elegemos directamente e não por ungidos ou manipuladores de fuzis. E, finalmente, a questão da educação: lembremo-nos de que em 1910 a taxa de analfabetismo rondava os 90% da população adulta, que em 1974 ela ainda era de 25% e que o recenseamento de 2011 ainda nos revelou uns miseráveis 9%.
Não fora este analfabetismo adulto perfeitamente terceiro-mundista e poderíamos dizer que Tomás da Fonseca era um pleno vencedor das causas difíceis por que lutou.
Fica a pergunta: faltará outro século para alcançarmos finalmente a vitória que no seu traçado de vida falta cumprir?
Uma sugestão final que endereço especialmente a quem se apresta a ler esta antologia: meditem bem na frase de Cesário Verde citada na página 192 cuja verdade me parece plenamente actual [A imprensa vale um desdém solene].
E a quem acredite nos valores da ética, da liberdade e da dignidade humana, convido a que continuemos a obra que Tomás da Fonseca nos legou.
Obrigado pela atenção.
Mortágua, 28 de Setembro de 2012