Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

A bem da Nação

ANGOLA E A SUA ECONOMIA – 3

(*) 

 

O DESEMPENHO DOS SECTORES PRODUTORES DE

BENS TRANSACCIONÁVEIS NA ANGOLA ACTUAL

 

 

2. Uma necessária breve abordagem teórica (continuação)

 

2.2. Os sectores produtores de bens transaccionáveis, a “doença holandesa” e o desenvolvimento

 

Não cabendo fazer aqui uma explicitação completa dos mecanismos de actuação da chamada doença holandesa, aliás disponível na literatura económica[1], importará contudo, ponderar sobre alguns dos principais aspectos responsáveis pelo seu desencadeamento.

 

De uma forma global, tal doença expressa-se num estiolamento ou um decréscimo sensível da produção de bens transaccionáveis (agricultura e manufactura)[2], como resultado de uma súbita e muito sensível obtenção de recursos adicionais provenientes de incrementos de rendas externas – geralmente advenientes do sector mineiro, mormente da produção/exportação de petróleo.

 

Esta terminologia resulta da identificação, na economia holandesa, de tais sintomas, como resultado dos súbitos e expressivos recursos adicionais resultantes dos booms registados na actividade de produção de gás.

 

Tanto a literatura de inspiração neoclássica como a chamada rentier theory[3] disponibilizam instrumentos que permitem a interpretação das formas de actuação da doença (embora esta de forma mais completa do que aquela).

 

A doença holandesa actua como resultado de vários mecanismos, nomeadamente:

  • Um processo de aplicação preferencial de recursos nos sectores ligados ao boom, sob ponto de vista financeiro bastante mais atractivos quando em comparação com os sectores de bens transaccionáveis
  • Um incremento na procura de bens e serviços (no sector público e não só), como resultado dos súbitos e avultados recursos adicionais obtidos através do boom
  • Um incremento geral e acentuado dos preços dos bens não transaccionáveis, resultante da impossibilidade da rápida satisfação da procura entretanto verificada (devido à rigidez da oferta, neste caso)[4]
  • Uma aplicação preferencial de recursos nos sectores de bens não transaccionáveis, tornados entretanto financeiramente bastante mais atractivos por via dos incrementos de preços verificados nesses sectores
  • Um afrouxamento qualitativo e quantitativo da política orçamental e monetária, em regra com o desencadeamento de défices públicos desadequados e de concessão excessiva de crédito (ao sector público, ou não). De igual modo, regista-se uma mudança nos próprios critérios de realização dos investimentos públicos devido a um sentimento de euforia de abundância de recursos. Os investimentos não são realizados em conexão com o objectivo do incentivo da produção, sendo comummente canalizados para obras de fachada e propaganda. Mesmo em investimentos realizados no sector produtivo, não são comummente acautelados os princípios da racionalidade económica, sendo muitas vezes efectivados numa base ilícita (em conexão com redes de influência público/privadas e/ou através da concessão de crédito, à partida, dificilmente reembolsável). 
  • Uma valorização da taxa de câmbio real, na decorrência:Uma degradação, em consequência, da competitividade do país, expressa numa crescente incapacidade de competir com as importações. Os recursos provenientes do boom não aproveitam o processo de desenvolvimento, contribuindo sim, para o declínio dos sectores de bens transaccionáveis.
    • De um afrouxamento na política cambial (expressa na valorização da taxa de câmbio nominal), devido a um sentimento generalizado de “abundância de divisas”
    • De muito sensíveis incrementos nos preços dos bens não transaccionáveis, não sujeitos a uma concorrência externa e, regra geral, com uma concorrência interna muito limitada, dada a própria natureza do mercado doméstico.
  • Esta é a perspectiva – correcta – obtida a partir do instrumental oferecido pela economia neoclássica e complementada pela rentier theory[5].

 

Contudo, algumas interrogações se impõem:

  • Será que a realidade se pode reduzir, em toda a sua plenitude, a este esquema?
  • Será que a geração da doença holandesa é explicável, se nos situarmos exclusiva ou preferencialmente no domínio económico?
  • Se os factores responsáveis pelo desencadeamento da doença holandesa são de índole puramente económica não será relativamente “fácil” para os decisores estabelecer um conjunto de políticas e de mecanismos que, pela profilaxia, impeçam o desenvolvimento da doença, nomeadamente através da “esterilização” do “excesso” de recursos proveniente do boom?

 

Efectivamente, a realidade é bastante mais complexa e o instrumental oferecido pela economia neoclássica e pela rentier theory não é suficiente para, só por si, explicar a doença. Esta é uma perspectiva a-histórica, não suficiente para a análise da envolvente institucional, social e política, viabilizadora do desenvolvimento da doença. E nem, principalmente, dos constrangimentos à aplicação dos instrumentos de carácter económico atinentes ao seu saneamento.

 

A realidade é infinitamente mais complexa tornando-se necessário integrar as válidas perspectivas parcelares, desde a rentier theory [6]– iniciada a partir dos vários choques petrolíferos, por autores do médio oriente – à moderna visão que estuda o fenómeno integrando-o numa perspectiva histórica, concreta e global. Importará aqui referir, sobretudo, a contribuição de Elsenhans, H[7].

 

Esta confere à análise uma perspectiva histórica não circunscrevendo o fenómeno exclusivamente ao universo do petróleo nem, de uma forma geral, às rendas externas. As rendas internas são igualmente integradas na análise, o que constitui um factor chave de decifração do substrato rendeiro comum[8] transversal às economias e às sociedades da África Subsariana e à sua natureza híbrida onde o modo de produção dominante não é o capitalista, pese embora a sua plena integração no sistema global capitalista com uma “utilidade sistémica”[9] definida pela actual divisão internacional do trabalho. Integra ainda a análise dos factores conducentes a uma “especialização desigual”, nascida e cristalizada ao longo da história, marcante da actual África Subsariana, nomeadamente dos constrangimentos do seu desenvolvimento.

 

(continua)

 

 Emmanuel Carneiro

1992-1993 – Ministro do Comércio e Turismo do Governo de Angola

1993-1994 – Ministro das Finanças do Governo de Angola

1996-1999 – Ministro do Plano e Coordenação Económica do Governo de Angola



[1] São tradicionalmente citados os trabalhos de Corden e van Wijnbergen. Ver, por exemplo, Neary, J. & van Wijnbergen, « Natural Resources and the Macroeconomy: A Theoretical Framework » in P. Stevens (ed.), The Economics of Energy, Edward Elgar, 2000.

[2] Vide Cottenet, 2000 e a justificação porque a síndrome holandesa constitui uma “doença” (p.525-527).

[3] Vide Carneiro, E., 2004.

[4] No caso da África Subsariana, este incremento é acentuadamente agravado pelos custos induzidos pela forma “extraeconómica” de distribuição e redistribuição do rendimento. Cf., a este respeito, Carneiro, E., 2004. 

[5] Enquanto o instrumental da economia neoclássica se situa no campo da “economia pura”, a rentier theory enquadra o fenómeno na sua envolvente social, política e institucional, equacionado ainda as suas consequências, a nível global e até comportamental, da sociedade e da economia. Constitui, contudo, uma análise a-histórica.

[6] A rentier theory, inicialmente suscitada pelo estudo das consequências dos choques petrolíferos em economias do Médio Oriente, a começar pelo Irão, numa dimensão económica, social, política, institucional e comportamental, é aprofundada em Karl, T.L., 1997. Aqui se explica a “inadequação das explicações de carácter económico” na decifração da doença holandesa: “The Dutch Disease is not automatic […] is the result largely of decision-making in the public realm” (p.5-6). É um processo que tem as raízes profundas nos domínios político e institucional, afectando o “modo de desenvolvimento”.

[7] Cf. Vils, O., 2000.

[8] Vide Carneiro, E., 2004. Efectivamente e em relação à África Subsariana, é como se a doença holandesa se fosse instalando e cristalizando ao longo do tempo, comummente não como o resultado de uma percepção súbita de windfall resources, mas sobretudo num contínuo processo histórico moldado pela lógica das sociedades tradicionais bem como por uma especialização económica “desigual”.

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2006
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2005
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2004
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D