DA NAÇÃO, DO NACIONALISMO E DO ESTADO-NAÇÃO
Contribuição para o debate proposto e iniciado pelo
Henrique Salles da Fonseca
Os Gregos clássicos, pedagogos eméritos, educaram até aos nossos dias as sucessivas gerações humanas do mundo ocidental. Fizeram-no servindo-se da Epopeia, da Tragédia, de várias outras Artes, da Matemática, da Filosofia e até da Mitologia. E esta não foi de menor importância.
Segundo os historiadores, em Delfos, - tido então por umbigo do mundo -, nos frontões do templo dedicado a Apollo, deus da ordem, a estátua deste foi emparelhada com a de Dionísio, deus das Artes e do caos. Dionísio é uma espécie de deus-espelho que reflecte para as pessoas a sua própria imagem, o que elas são. Seria esta a missão do artista.
Oráculo de Delfos
Reza a lenda, que Dionísio foi forçado a travar uma batalha com Penteu, o Rei de Tebas, avesso esta às ideias universalistas. Penteu teria sido um personagem digno, com motivos nobres em relação à sua cidade, mas carregava consigo a visão repressiva de épocas anteriores. Com intenção de resolver este conflito, as pitonisas de Tebas inscreveram nas paredes do templo as seguintes máximas:
O justo é belo.
Tudo tem a sua medida.
Rejeita a sobranceria.
Respeita sempre os limites.
Aqui já não há guerra; há harmonia. Com a intersecção das máximas de cunho dionisíaco (1 e 3) e as de cunho apolíneo (2 e 4), as pitonisas formaram uma "grelha" de teste de sabedoria, tão válida hoje como o era 500 anos antes de Cristo.
Cem anos mais tarde, o dramaturgo Sófocles ocupou-se eloquentemente destes temas. Na sua trilogia – “Édipo Rei”, “Édipo em Colono” e “Antígona” - questionou o poder dos deuses, a autoridade do sagrado, a natureza da família e a verdade da pessoa humana. (O seu Édipo antecipa Freud 2 500 anos). A lição de Sófocles é que, mediante auto conhecimento, o homem encontra forças que lhe permitem enfrentar a adversidade neste Mundo. Deixaria pois de ser necessário submeter-se a um deus ou a um tirano, como desnecessário se tornava que a cidade fosse fechada. O homem que se conhece a si próprio, aceita facilmente o xenos (o estrangeiro). Do auto conhecimento humano resultou a consciência de que o ser humano pertence a um universo maior que o da polis (cidade). Terá então nascido o conceito de humanidade. Estava iniciado o discurso da emancipação.
Se observarmos o que aconteceu com a ideia de Nação - e aos conceitos inerentes de nacionalismo e Estado-Nação - somos forçados a admitir que cabe tudo na grelha de Delfos. A ideia de Nação começou por ser justa e bela - defesa interna contra a tirania e defesa externa contra a cobiça alheia. Internamente, defesa do povo contra os abusos do poder absoluto; externamente, protecção das periferias exploradas e descuidadas pela centralidade sistémica. Já lá diziam os antigos Gauleses: - "Roma nunca vê por onde anda; os seus cascos pesados caem-nos sempre sobre o estômago, o coração ou a cabeça. E Roma nem repara quando berramos…"
Mas, lamentavelmente, o que era belo e justo transformou-se às mãos dos políticos oportunistas. Os que apregoaram a Nação perderam o sentido da medida e tornaram-na motivo de sobranceria: por fim, nas duas últimas guerras mundiais, o nacionalismo ultrapassou todos os limites do respeito pela pessoa humana.
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Os que procuram no étimo o significado das coisas terão, no caso, surpresas. Nação virá do latim, - nato, natio, ou natione - mas os Romanos nunca usaram a palavra para se descreverem a si próprios. A gente de Roma era o Populus Romano; nações eram outros agrupamentos, tanto de homens como de animais (ver Michaelis). A palavra Nação não se aplicava a um povo organizado, hierarquizado e regido pela lei; descreveria talvez agrupamentos, bandos ou tribos sob mando ocasional imposto pela força. Já no período medievo, algumas Universidades italianas foram buscar o termo para descreverem os alunos não italianos que as frequentavam. A estes foi reconhecido o direito de representação em defesa de condições para superarem as dificuldades causadas pela diferença de língua e cultura. Os Italianos não eram nação pois não tinham tais problemas. Nação designava portanto os outros.
A prática terá chegado a Paris pela via universitária e, provavelmente, foi em França que a palavra adquiriu novo sentido. Deixou de significar "os de fora" para significar "os de dentro". De "eles", passou a "nós". Isto aconteceu por alturas em que o jurista Jean Bodin, em resistência ao Papado, inovou, propondo no seu livro Les six livres de la République, (1576) o instituto da soberania do estado. Os enciclopedistas encarregar-se-iam de arquitectar a soberania da Nação, o Estado-Nação.
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O Estado-Nação provou possuir um dinamismo poderoso e iluminou a Idade Moderna europeia. Fez muito pelos povos mas acabou por os lançar na desgraça. Rousseau viu o mal mas não soube como o evitar; o mesmo se passou com Romain Roland. Para ambos, o estado nacional - instituição de má natureza deveria ficar submetido a um órgão internacional -instituição de boa natureza. Diziam os românticos alemães que a ideia da soberania do povo que inspirou a revolução francesa era boa. A degradação subsequente e a rápida intervenção do poder tirânico de Napoleão aconteceu porque a gente que se apoderou da ideia era fraca (esta é geralmente a explicação alemã para tudo o que não compreendem).
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No pós napoleónico surgem na Europa duas versões de nacionalismo: - a ocidental nórdica, inspirada pela classe média (burguesia), que se funda num conceito racional de nação como associação de cidadãos vivendo num território comum e partilhando uma economia comum; e a oriental e mediterrânica, regiões onde não surgiu uma classe média significativa, que vem a nação como entidade indivisível e orgânica, como uma espécie de alma que apenas os vernáculos podem sondar. Este tipo de nacionalismo tornou-se autoritário e intransigente, enquanto o primeiro abraçou facilmente o liberalismo. Por vezes, ambos os tipos coincidem ou alternam-se no mesmo quadro nacional, dependendo dos altos e baixos da economia e da educação da classe média.
No sentido modernista, Nação seria um agrupamento de pessoas unidas por um projecto comum. Que projecto? - Reabilitar o passado, como pretendia Salazar, ou preparar o futuro, como ambicionavam os peregrinos do Mayflower? Niels Bohr, o físico dinamarquês que abriu a porta à teoria quântica, dizia que "O nacionalismo é uma espécie de sífiles espiritual que gradualmente vai destruindo os cérebros - até os melhores – do nosso tempo". O politólogo americano Karl Wolfgang Deutsch, – o primeiro cientista que aplicou a matemática e a estatística (tudo tem a sua medida) ao estudo da relação entre a sociedade e a política – admitia que "Uma nação é um grupo de pessoas unidas por um erro comum quanto á sua origem e uma hostilidade colectiva em relação aos seus vizinhos". Deutsch reconheceu contudo que o poder coesivo da ideia poderia ser altamente útil se utilizado para fins de desenvolvimento económico. Cedo ou tarde, todos temos necessidade de dizer “Nós, os...”. A identidade nacional representa a forma principal e forte de identificação colectiva. É uma não-escolha geralmente aceite.
Mas se há uma necessidade de identificação é porque não há identidade. Voltamos a Sófocles – conhece-te a ti próprio.
Para os pós-modernistas a confusão é irremediável: os conflitos passado-futuro, local-universal, liberal-autoritário são irreconciliáveis. "O conflito atravessa qualquer consenso" diz Derrida. Eles negam a emergência de formas universais de lei e moralidade e negam a disponibilidade de um ponto fixo, tal como a razão. Só aceitam o discurso clássico da emancipação.
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Quer isto dizer que o conceito de Nação está esgotado? De maneira nenhuma. A vitalidade e capacidade de mobilização dos espíritos da ideia continua a ser preciosa para defesa dos interesses, sobretudo dos povos periféricos. Hoje, como no tempo dos Romanos, o centros hegemónicos - mundiais ou regionais - continuam a não ver onde pisam. O que acima ficou quer apenas dizer que há que equilibrar o uso da ideia de Nação, manuseá-la com grande cautela, e isto porque a ideia é explosiva com enorme poder destruidor.