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A bem da Nação

NÓS E A “MÃO INVISÍVEL”

No seu apontamento "Odiar Bill Gates" (O Expresso de 04/02), João Pereira Coutinho começa por referir a "mão invisível" de Adam Smith e termina, num registo completamente diferente, com um juízo cruel sobre a mentalidade portuguesa de agora (na esteira, aliás, da ideia que, há um par de séculos, Feuerbach fez do Portugal de então). É certo que Smith viu no interesse individual a causa profunda da evolução harmoniosa da sociedade britânica (sociedade que, considerava ele, seria o paradigma da civilização). Como não é menos certo ter sido essa, desde então, a interpretação mainstream de toda a sua obra e o ponto de partida das muitas escolas de pensamento (políticas, sociológicas e económicas) que nela foram beber. Mas se Smith tivesse reparado melhor no percurso histórico da sua Escócia natal, sem necessidade de ir mais longe, teria visto uma contínua sucessão de interesses individuais que iam entrando em confronto. Era assim também por toda a Europa – e tinha sido sempre assim, desde que havia memória. Sob este ângulo, nada de novo estava a irromper História adentro. Não terá escapado a Smith o facto de, por esses dias, a mobilidade social acontecer mesmo e ainda com maior impulso, em tempos de paz – e isso, sim, era uma verdadeira novidade. Ter-se-á apercebido, também, de que o próprio conceito de riqueza se ampliava: da terra (e das casas) para as mercadorias e destas para o capital financeiro. Os exemplos que escolheu para ilustrar o seu pensamento (de gente que nunca privaria com o poder régio nem frequentava círculos cortesãos) e o título do seu escrito mais conhecido (até então, a riqueza dos reinos - e não das nações - media-se em territórios, domínios e possessões), não deixam lugar a dúvidas quanto a isto. Enganava-se, porém, quanto ao que estava a determinar as transformações sobre as quais escrevia: não era o interesse individual, que nunca deixara de marcar presença ao longo da História, mas o modo radicalmente novo como cada vez mais indivíduos passavam a poder prosseguir o que entendessem ser do seu particular interesse. Até aí, apenas a correlação de forças, os jogos de poder e, ultimo ratio, a violência traçavam os limites do que poderia ser realizado. Daí em diante, porém, outras regras mais iriam começar a produzir efeitos. Aliás, Smith não teria de recuar muito no tempo para ver como, durante séculos e séculos, as coisas se tinham passado – e, provavelmente, ainda viveria paredes meias com abundantes vestígios do que haviam sido essas antigas formas de (sobre)viver. Mesmo naquelas sociedades que a divisão do trabalho já estruturava, só uns poucos decidiam sobre o excedente económico (tudo o que ia além da elementar subsistência); e parte substancial do produto, num primeiro momento, era apropriada mediante exacções várias, para, no momento seguinte, ser distribuída através da dádiva e da partilha em espécie (os mosteiros, as cortes, etc., são eloquentes testemunhos disso). Exacção, dádiva e partilha em espécie foram, séculos a fio, as três formas conhecidas de fazer chegar a todos o seu quinhão, por mais ínfimo que este fosse. As trocas mercantis existiam já (aliás, o comércio nunca tinha deixado de existir), mas estavam confinadas a uma estreita franja de bens (muitos deles exóticos) – e os poderosos incentivavam-nas porque viam nelas, ou uma afirmação de prestígio pessoal, ou uma via expedita para extorquir mais tributos. O que verdadeiramente irrompia pelo quotidiano de Smith era a moeda (melhor se diria: o stock de moeda de ouro e prata, e a correspondente circulação monetária), instrumento que desempenhava um papel essencial na formação dos Estados absolutistas (poder-se-ia escrever uma “História da Europa” contada pelo dinheiro). Não mais trocas directas – mas trocas monetárias. Não mais a incomunicabilidade entre “moedas de troco”, remetidas ao comércio de vizinhança e “moeda de entesouramento”, destinada à salvação do corpo (pagamento de resgate, na guerra; remição de penas, na justiça; compra de boas vontades, junto dos poderosos) e da alma (doações, sufrágios) – agora, o dinheiro era, simultaneamente, tudo: instrumento geral de trocas, reserva de valor e meio capaz de liberar toda a forma de exacções. No plano individual, não mais a violência para dar expressão a interesses particulares, mas o empenho em entrar na longa corrente de trocas mercantis. Lado a lado com a tutela dos poderosos, apesar de tudo ainda valiosa, a posse de moeda passava a determinar, agora, que interesses próprios um comoner poderia ver pacificamente realizados. À economia “real” ia-se sobrepondo, lentamente, mas sem recuos, uma economia “nominal”, onde cada um, até mesmo o soberano absoluto, se confrontava com uma restrição de natureza monetária (ou restrição nominal): quem tinha dinheiro, agia; quem não tinha, sonhava. Era ela, a restrição nominal, alimentada e exaurida pela dinâmica das trocas monetárias (no oposto da trilogia: exacções, dádivas, partilha em espécie), a verdadeira “mão invisível”. O que tem isto a ver com o Portugal de hoje? Tudo. Adam Smith está longe de ser um simples pretexto para mais um exercício de autoflagelação. Bem no íntimo da nossa mentalidade colectiva, nós, portugueses, ainda vivemos no tempo da exacção, da dádiva e da partilha. Falta-nos interiorizar o papel fulcral das trocas monetárias na estruturação do progresso – e não nos conformamos com o facto de uma restrição nominal, ora mais apertada, ora mais folgada, nos acompanhar para todo o lado, ditando, inflexível, o que está e o que não está ao nosso alcance satisfazer. As sociedades modernas, baseadas no modelo de mercado, são-nos completamente estranhas. Quando em solo pátrio (no estrangeiro, ele imediatamente percebe que as regras lá são outras e que o futuro passa inevitavelmente por empreender trocas monetárias bem sucedidas), o português sonha viver, qual suserano, de exacções. E, se não puder, pelo menos que haja alguém que o livre delas; a ele, mas não aos outros (o nosso reconhecido apego aos estatutos de excepção), para que daí ela possa também tirar proveito, através de dádivas (vulgo, subsídios) e, ocasionalmente, da partilha em espécie (que outra explicação para a catadupa de almoços e jantares, na política). No fundo, no fundo, todos ambicionamos ser aquele fidalgote de província que vive de rendas; que as fixa arbitrariamente, ao sabor das suas pessoais conveniências; que reparte, por aqui e por ali, o que de todo já não quer; que respeita, apenas, as normas que mais lhe agradam. Regaladamente e sem riscos. Em suma, todos gostaríamos de ser Governo e talhar o orçamento como melhor nos parecesse. Mas como tal está vedado à generalidade dos cidadãos, pois que não se percam as dádivas e a partilha, que só a presença assídua à mesa do orçamento pode satisfatoriamente proporcionar. A pensar assim, dificilmente franquearemos o fosso que nos separa das economias desenvolvidas. Persistindo, persistindo sempre, em ignorar a “mão” que, afinal, está bem visível no modelo de mercado, caminharemos para a extinção, quais dinossauros, à míngua de nicho ecológico que nos ampare. A. Palhinha Machado Fevereiro de 2006

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