Heresias - VIII
A ARITMÉTICA DO DESEMPREGO - III
v A pergunta que deixei no ar na última Heresia tem que se lhe diga. A resposta, essa, passa por uma característica muito esquecida do modelo de mercado: a sua base contratual.
v Se repararmos bem, hoje em dia, é com contratos:
(i) que se dá forma à participação no processo produtivo;
(ii) que se distribui o rendimento;
(iii) que se aplica o excedente em investimentos vários;
(iv) que se cria, faz circular e extingue o dinheiro (a liquidez);
(v) que se anima a esfera real da economia.
E é nos mercados que se manifesta a livre vontade de contratar.
v Contratos sinalagmáticos, do tipo: “toma lá (dinheiro), dá cá (bens, serviços, trabalho, instrumentos financeiros, que são direitos)”. E residem aqui duas das insuperáveis limitações do modelo de mercado:
- Sendo a liquidez (o dinheiro) um dos seus elementos estruturais (os outros são os contratos e as regras), este modelo não tem como determinar qual o volume de dinheiro mais adequado para cada momento (em “economês”: o volume de dinheiro é uma “variável exógena ao modelo”);
- E, não obstante, o dinheiro é criado quase à discrição por Bancos Centrais e Bancos Comerciais (e, do ponto de vista individual, “quanto mais dinheiro, melhor, sempre”) - pelo que a dinâmica dos mercados não conduz necessariamente a uma distribuição do rendimento em que todos estejam conformes com o quinhão que lhes couber (em “economês”: o “óptimo paretiano” é, apenas, uma ficção ideológica).
v Por consequência, uma sociedade organizada segundo o modelo de mercado é intrinsecamente instável. E as variações no volume e na distribuição da liquidez estão na origem de muita dessa instabilidade (outras causas há, naturalmente, que, em “economês”, se designam, a propósito, por “choques exógenos”).
v Sem dinheiro no bolso, ainda que emprestado, não há como obter um quinhão, por mais modesto que seja, do produto social. Sem nada na mão que interesse a alguém com dinheiro (capacidade para trabalhar, se nada mais houver), não há como obter dinheiro. [É precisamente aqui que reside a importância dos Bancos Comerciais no modelo de mercado: são eles que criam, fazem circular e
extinguem mais de 90% da liquidez que torna os contratos possíveis. O soit disant “crédito bancário” nada mais é que a liquidez que os Bancos criam por meio de um simples lançamento contabilístico (moeda escritural) para comprarem dívidas de terceiros.]
v Em ambos os cenários, está-se arredado dos mercados (em “economês”: não se é agente económico) – porque não existe forma contratual para trazer de volta aos mercados quem não tem, nem como, nem com quê, nem com quem contratar. [Outras formas de organização social há, mas essas condenam ao ostracismo os que não caiam nas boas graças do “ditador iluminado” de serviço; aí, são os favores do poder que servem de crivo.]
v Visto no estado puro, o modelo de mercado é um clube:
(i) cujo direito de admissão está reservado, ou a quem tenha dinheiro, ou a quem possa obtê-lo por obra e graça de um qualquer
contrato sinalagmático; e
(ii) cujos estatutos não contemplam a readmissão de ex-sócios sem dinheiro nem maneira de o obter.
v E é aqui que surge a terceira limitação insuperável do modelo de mercado: quem não tenha dinheiro nem maneira de o obter por via contratual, não mais voltará a participar no processo produtivo e, por aí, na distribuição do rendimento. Se for empresa, estará insolvente, e terá de ser liquidada; se for indivíduo, não encontrará no modelo de mercado (e na divisão do trabalho) como assegurar a sua subsistência.
v Acontece que os mais de nós só têm, à partida, para oferecer trabalho – e é a trabalhar por conta de outrem (um contrato) que conseguem participar no processo produtivo e na distribuição do rendimento. Sem contrato de trabalho (isto é, no desemprego) serão sócios banidos do clube – se é que alguma vez chegaram a ser admitidos.
v Numa economia fechada, um “choque exógeno”, uma diminuição no volume de dinheiro que circula, e são oportunidades de participar no processo produtivo que desaparecem com a consequente quebra no produto social e no rendimento. Para inverter o ciclo, só um novo “choque exógeno”, agora de sinal contrário, ou a expansão deliberada do volume de dinheiro em circulação (em “economês”: uma política de “quantitative easing” bem ao gosto keynesiano). Por isso se diz que o modelo de mercado, deixado a ele próprio, sem “choques exógenos” nem medidas políticas, é estruturalmente contraccionista (além de instável, como descrevi mais acima).
v Em economia aberta as coisas só não são exactamente assim porque o exterior é, por definição, uma fonte inesgotável de “choques exógenos” que, com sorte, se compensarão - ou, talvez, se neutralizem.
v Já não seria mau se a fragilidade do modelo de mercado se resumisse às referidas três limitações. Mas não. Os agentes económicos são seres condicionados por estados de alma – emoções que lhes impõem, ora um, ora outro de três critérios de decisão possíveis:
- Maximizar (isto é, quanto mais, melhor) o produto (bens, serviços, recursos gerados), para um dado volume de recursos absorvidos (idem) que seja financiável (em “economês”: que satisfaça a restrição de liquidez);
- Optimizar (isto é, ir tão longe quanto o balanço entre recursos gerados e recursos absorvidos permitir) o excedente (a nível “micro” falar-se-á de lucro);
- Minimizar (isto é, o menos possível) os recursos absorvidos, para um dado nível de produto considerado sustentável aconteça o que acontecer no futuro (uma espécie de última trincheira).
[Em circunstâncias muito particulares, estes três critérios de decisão convergem para uma mesma solução de recursos gerados e
absorvidos. Mas, em geral, não é assim.]
v Maximiza-se quando há a ideia (mais do que a prova provada, o sentimento) de que a procura (interna e/ou externa por bens, serviços e instrumentos financeiros) se encontra em plena expansão, sem limite à vista. Neste cenário, o dinheiro é fácil e as oportunidades não faltam para participar no processo produtivo. Quando muito, verificar-se-á o desemprego temporário dos que saltitam entre contratos de trabalho (em “economês”: desemprego friccional) ou entre iniciativas empresariais. Mas, no fundo, o modelo de mercado deixa todos satisfeitos, sejam quais forem as tecnologias utilizadas.
v Optimiza-se não tanto porque os sentimentos em torno da procura começam a revelar-se optimistas, mas porque se torna evidente que os custos crescem mais rapidamente do que os proveitos. Agora, é a gestão da liquidez que comanda - e as tecnologias “poupadoras” (nas matérias-primas, na energia e no trabalho contratado) passam a estar na moda.
v Minimiza-se quando é geral a convicção de que a procura e os proveitos, afinal, têm limite – e que esse limite foi já atingido, se não mesmo ultrapassado. Reduzir o peso das matérias-primas, da energia e do trabalho contratado no produto passa a ser condição incontornável da continuidade das empresas (em “economês”: preservar intacta a restrição de liquidez que define o agente económico).
v Tanto “optimizar” como “minimizar” são sinónimos de desemprego - mas “minimizar” é um estado emocional que traz com ele o desemprego estrutural (os que são escorraçados do tal clube).
v Esta conjugação, inevitável, das três limitações com os estados emocionais tem um significado preciso: contrariamente ao que os teóricos ideólogos proclamam desde finais do séc. XIX, não está ao alcance do modelo de mercado assegurar que, em todas as circunstâncias, quem queira participar no processo produtivo tenha oportunidade para o fazer (em “economês”: o pleno emprego).
v As emoções, com ou sem boa razão, contam. E mais contarão se tiverem à disposição tecnologias “poupadoras”. É certo que as emoções podem ser, de algum modo, influenciadas (em “economês”: gestão das expectativas). Porém, a adopção de tecnologias que permitam fazer mais com menos é imparável, seja qual for o estado emocional - dado que elas conferem vantagens competitivas que os mercados não deixam de premiar.