FIM DO IMPÉRIO
Desde os tempos dos primeiros contactos com os povos do Congo e Angola, apesar de todas as batalhas travadas com muitas forças locais, muitas mortes de parte a parte, Portugal sempre soube reconhecer a soberania dos Sobas, inclusive prestar-lhes honras ao recebê-los na capital, São Paulo de Luanda.
Infelizmente isto acabou com a imposição pelo famigerado Tratado de Berlim de 1884, mas a humanidade dos portugueses continuou.
Houve, sim, muito português selvagem. Nenhum povo se pode gabar de não ter tido gente desta. Mas os governos que Portugal mandou para Angola, sempre foram formados por gente da melhor elite. Cultos e educados.
Ainda hoje somos os únicos capazes de dialogar em pé de igualdade.
Rio de Janeiro, 8/06/2012
CHISSOIA
(Relato verídico extraído do livro "Kinda", de Carlos Acabado, colecção "Fim do Império" Nº3 - Portugal)
Quando a luz difusa que anuncia o amanhecer tropical começou a dar cor ao casario da cidade, havia já na marginal um movimento desusado. Ao fundo da avenida, frente ao porto, a praça fora engalanada com bandeiras e a tribuna erguida na véspera, recheada de cadeirões forrados a veludo vermelho, aguardava, imponente, a chegada das individualidades. Comemorava-se o dez de Junho e Portugal, de Camões e da raça, e os heróis iam ser solenemente exaltados.
Do alto do pedestal a estátua do navegador, erguida no centro do largo, olhava a baía a que os raios do sol nascente douravam já as águas tranquilas, como se aguardasse ainda a chegada das naus, deslizando suaves e silenciosas, como cisnes negros de asas brancas.
Nesse tempo, a população descia dos morros e barrocas sobranceiras á zona ribeirinha, esperando que os nautas varassem os botes na praia para o encontro dos mundos que "o mar já unia". Agora, a baía, que se recorta como um sensual dorso de mulher, foi pudicamente coberta com o manto verde das palmeiras da marginal, e na comunhão dos mundos só as naus estão ausentes. Portugal e o mar ali estavam, marcando presença perante uma população que, a pouco e pouco, tomou a cor da mestiçagem de sangue e vivência, deixando perplexo, quem se interrogasse, de que raça se iriam enaltecer as virtudes naquele dia!
A praça fora enchendo. As cadeiras da tribuna tinham sido ocupadas e um general, em voz monocórdica e enrouquecida, lia o discurso onde salientava que quinhentos anos de esforço, e querer, uniam o herói que, ali imortalizado em pedra, olhava absorto o oceano sem fim, aos heróis de hoje que, frente á tribuna, aguardavam o agradecimento da Pátria reconhecida.
Perfilado, com a dignidade de um bem-nascido, altivo no camuflado verde, o Chissoia aguardou o chamamento e a leitura do louvor em que era descrito o seu acto de bravura. Subiu os degraus da tribuna e, como se fosse talhado em ébano, sem mover um músculo, abriu o peito largo onde o general, quase em bicos dos pés, lhe colocou uma cruz de guerra, dizendo-lhe em voz baixa que Portugal sentia orgulho por ter filhos como ele. Regressou ao lugar na fila dos heróis e, erecto, assistiu ao desfile de estandartes dos batalhões espalhados pelos confins do território, à passagem do corpo de fuzileiros, do regimento de comandos, dos flechas e dos leões de Cabinda, que em marcha acelerada entoavam canções guerreiras. A cavalaria fechou o desfile a galope curto, com garbo e tradição.
Era impressionante a portugalidade que se respirava e as gentes, de todas as cores, que tinham emoldurado a praça, ao dispersarem derramavam na cidade a confiança inabalável no Portugal granítico e multirracial que, naquela manhã, tinha estado presente naquele largo, frente ao porto.
Quando conheci o Chissoio era ele já um veterano de guerra, não que fosse velho, pelo contrário, apenas começara cedo e aprendera depressa. Parece que desde pequeno acompanhava o pai como pisteiro de elefantes. O Lucusse, onde nascera, era uma zona de passagem dos paquidermes que, nos seus itinerários até ao rio Lungué-bungo, muitas vezes destruíam o trabalho de meses no arranjo das lavras. Entre os animais e os aldeões travava-se uma luta pela sobrevivência, em que nem sempre eram os humanos os vencedores. Era assim natural que os caçadores, convidados pelo governador do distrito ou pelos homens importantes da província, fossem vistos com agrado pelas populações, pois além de abaterem alguns animais, afugentando por algum tempo as manadas, deixavam toneladas de carne que, mesmo dura e fibrosa, o soba e o velho Chissoia ficavam encarregados de distribuir. Aos brancos só os dentes interessavam, e o velho pisteiro aguardava que os crânios enterrados apodrecessem para lhes retirar as presas que, numa próxima visita, entregava já limpas de medula.
Foi nessa época que os Chissoias, pai e filho, se tornaram amigos de gente importante. O profundo conhecimento das matas e a perícia em seguir e interpretar trilhos como quem lê um livro, aliados à camaradagem que a aventura comum proporciona, permitiu-lhes sentarem-se, conversar e comer lado a lado com os grandes da terra que, amiúde, os presenteavam como prova de reconhecimento. O prestígio do velho Chissoia era grande perante as populações, não só dos povoados próximos, como de toda a região.
Corriam tranquilos os primeiros anos da década de sessenta. A luta que se ateara no norte do território não tinha chegado ainda às planícies sem fim do leste. As matas eram seguras e, logo pela manhã, as mulheres seguiam em fila e sem receios, para as lavras onde recolhiam lenha e mandioca para o sustento da prole.
Uma madrugada apareceu no Lucusse um grupo de gente estranha à região. Vinha armada e queria falar com o soba. Depois de uma longa conversa, e perante a atitude de incompreensão e até de alguma hostilidade, o chefe do grupo resolveu utilizar um meio de persuasão mais eficaz e, perante a população aterrorizada, fuzilou o soba por ser um chefe corrupto e o velho Chissoia por ser lacaio dos colonialistas. O filho fugiu para a mata e, passados dias, chegou à capital do distrito, onde contou o sucedido. Acompanhou depois a força militar que foi enviada para a zona e seguiu, até ao fim, a pista de rastos humanos como o pai lhe ensinara a seguir a dos elefantes.
A partir dessa época ficou ligado ao destacamento militar que foi aquartelado na povoação. O seu conselho e actuação foram sendo cada vez mais imprescindíveis, acabando por ser integrado nas forças irregulares, chefiando um grupo de homens escolhidos por si e com relativa autonomia.
Quando a luta de defesa do território foi alargada ao leste para suster a tentativa do inimigo de alcançar o planalto central por essa via, a táctica das nossas forças teve que se adaptar ao terreno plano e com grandes extensões pouco povoadas. A Força Aérea iniciou então uma colaboração íntima nas operações terrestres, proporcionando uma maior mobilidade através de helicópteros e aviões ligeiros. Foi nessa época que conheci o Chissoia, e muitas horas passadas em amena conversa, junto das fogueiras que aqueciam as noites frias das savanas de leste, caldearam a amizade e a admiração que desde então sentia por ele.
Uma tarde, quando o crepúsculo já anunciava a noite que cairia breve, perto do lago Dilolo, quando o seu grupo dava protecção a um movimento das nossas tropas, houve uma emboscada e dois soldados feridos jaziam no chão dentro do campo de tiro do inimigo, que continuava a alvejá-los. Passado o primeiro momento de surpresa, o Chissoia levantou-se e, a descoberto, com a arma ao quadril, fazendo fogo para se proteger, foi buscar um e, depois, o outro, arrastando-os para lugar mais seguro.
Foi por esse acto de bravura que o Chissoia esteve presente naquele dez de Junho, em que o general se esticou para lhe pendurar a condecoração na farda honrada e que, passados tantos anos, algures num recanto de Portugal, dois homens de meia-idade podem recordar, em reuniões de família, como uma vez, quando estavam no Ultramar, um preto lhes salvou a vida.
O ano de setenta e quatro decorreu convulso! A esperança inicial, transmitida pelos novos políticos no poder, em vez de tranquilizadora e bem colocada, parecendo ter a percepção da complexidade dos problemas a enfrentar, fora substituída por dúvidas cada vez mais angustiantes. As cidades tinham acolhido com palmas os guerrilheiros vindos das matas, aplaudindo-os como actores inesperados, num final de acto antecipado e improvisado, mas antes do fim do ano muitas das mais importantes povoações eram já palco de lutas entre os diversos movimentos , com recurso a armas pesadas, que destruíam tudo o que fora construído com sacrifício e amor.
As Forças Armadas portuguesas, desviadas dos seus objectivos e da sua missão, assistiam a tudo como espectadoras, ocupando, salvo raras excepções, um lugar pouco digno.
A partir do meio do ano setenta e quatro, começaram a chegar a Lisboa os soldados do fim da era imperial. Traziam estampada no rosto, na farda e na mente, a parte negativa da revolução.
A população civil começara há muito a sair face à insegurança em que se passou a viver, e muitos de nós, militares, habitávamos as casas vazias onde tínhamos vivido com as famílias, aguardando o fim da missão.
Uma noite ouvi um bater tímido de palmas no quintal da casa que ainda ocupava. Quando abri a porta, o Chissoia e a família estavam à minha frente.
"Preciso de ajuda!" atirou, quase envergonhado.
"Entrem e sentem-se por aí", disse, apontando os caixotes onde embalava o que queria levar de regresso a Lisboa. "Cadeiras já não há!", conclui.
A mulher e os filhos acocoraram-se, silenciosos, junto à parede da sala. Eu e ele sentámo-nos frente as frente, como sempre tínhamos feito, cada um em seu caixote.
"Estamos abandonados!", começou "Três dos meus homens foram detidos por um dos movimentos de libertação, e foram mortos..."
"Não pode ser", interrompi "Vocês terão que ser protegidos nos acordos que se fizeram" afirmei, procurando eu próprio dar convicção ao que dizia.
"As patrulhas deles procuram-nos sem que alguém nos dê protecção!..."
"Isso não faz sentido! A responsabilidade aqui ainda é nossa... o comandante do batalhão é a autoridade!", exclamei indignado.
"Fui ao comando militar hoje à tarde. Um tenente de barbas, que parece ter chegado há pouco tempo, disse-me uma coisa que me deixou sem dúvidas..."
"O que foi?", perguntei.
"Quando soube o meu nome, perguntou o que é que eu esperava que acontecesse aos lacaios e traidores do povo...". As lágrimas dançavam-lhe nos olhos sem cair, como se a raiva e o orgulho as segurassem. "Isso foi o que disseram ao meu pai em Lucusse antes de o fuzilarem...", e num desabafo murmurou "Só que esses eram negros... um tenente branco não me pode dizer isso... porque aqui o traidor é ele... eu fui condecorado, o general disse-me que tinha orgulho de mim, de um português como eu... quando esse homem souber o que me disseram..."
Olhei-o cheio de amargura, sem ter a coragem de lhe dizer que esse general assumira agora outras funções e que ele, Chissoia, era uma ligeira sombra na sua memória, nas suas preocupações... talvez na sua consciência.
Desceu sobre nós um silêncio pesado e trágico. Olhávamo-nos mudos. Os caixotes em que nos sentávamos e a casa vazia que nos albergava pareciam ser tudo o que restava do mundo em que até aí tínhamos vivido.
Subitamente, a filha mais nova, com os cinco anos a reluzirem-lhe na face risonha, levantou-se e, sem quebrar o silêncio, foi apanhar do chão uma boneca de cabelos loiros que uma das minhas filhas tinha deixado para ser enviada nos caixotes. Voltou a acocorar-se junto à mãe com a boneca nos braços, cantando-lhe baixinho uma canção de embalar, que certamente aprendera com as mães negras do bairro onde vivia.
A pouco e pouco a força telúrica da melodia, quase murmurada, foi aquecendo o silêncio, enchendo-o da energia profunda da África eterna, renascida das cinzas, verdejante depois das queimadas. A alma foi-se-nos erguendo como se a canção fosse um hino que nos devolvia o ânimo e, em silêncio, ambos procurávamos já a solução que todos os problemas têm.
"Eu posso arranjar passagens para Luanda no avião de amanhã" alvitrei, buscando saída.
"Luanda não é o meu povo. Só lá fui uma vez..." referia-se à data da condecoração "Lá ficamos ainda mais desprotegidos".
"Posso tentar que vão para Portugal, mas, pelo que sei, não vai ser fácil nem rápido", disse, recordando as notícias que nos chegavam pelas tripulações.
“O mais difícil é sair daqui com a família. Com eles não consigo passar sem ser visto".
"Mas sair para onde?", perguntei, sem vislumbrar a solução.
"Tenho gente na mata, que me mandou recado. Há movimentos que não se importam de nos aceitar.
Precisam de homens com experiência para as guerras que vão chegar."
"Que posso fazer?", interroguei com desalento, pensando no papel que teríamos ainda que representar na tragédia que se vislumbrava já no horizonte.
"Aquela pista que uma vez abrimos para utilizar só em operações especiais, continua boa e abandonada...", sugeriu a medo, consciente do que pedia "Podemos ser postos lá?..."
Eu tinha presente a localização da pista. Fora aberta na orla de uma mata, longe de povoações, apenas para ser utilizada em operações que se desenrolassem perto da fronteira.
“Já mandei os meus homens sair da cidade, só ficaram duas mulheres, eu e a minha família; se nos puder ajudar..."
Sabia o risco que corria ao dizer-lhe que sim. A zona já fora evacuada pela nossa tropa e, ainda que isolada, poderia andar perto algum grupo que não hesitaria em abrir fogo se nos visse aterrar.
Pela minha memória passou aquela madrugada em que tinham chegado ao acampamento os dois soldados feridos, mas salvos pelo Chissoia.
O Portugal que eu era devia um sacrifício, um acto de gratidão, ao Portugal que ele, Chissoia, deixara já de ser.
Dormiram essa noite na minha casa depois de ter ido buscar, furtivamente, as duas mulheres e mais duas crianças, evitando as patrulhas que circulavam pelas ruas desertas da cidade. De manhã, muito cedo, meti-os no jeep que ainda me estava distribuído, e dirigi-me à base onde tinha o avião para regressar a Luanda logo que a minha missão ali estivesse cumprida.
Desloquei e tomei o rumo da pista que nos aguardava na mata. Daí ao Lucusse seriam uns dias de caminho árduo, mas era preferível percorrê-lo a serem abatidos como traidores.
A faixa deserta estava mergulhada no silêncio hostil das coisas abandonadas. Tudo estava agora vazio, dominado pela mata que parecia querer recuperar para si a pista, como cicatrizando uma ferida aberta. Aterrei e, para não parar o motor, mantinha-o a baixas rotações. O hélice provocava um som triste de chicotadas que, repercutindo-se de árvore em árvore, ia morrer nos confins da floresta.
O Chissoia ajudou a família a descer rapidamente do avião, conhecendo perfeitamente o perigo que todos corríamos se, por acaso, um grupo dos novos senhores da guerra nos surpreendesse. Ao sair colocou-me, num gesto mudo, a mão sobre o ombro, dizendo assim tudo o que nem eu nem ele tínhamos coragem para dizer. Depois, caminhou apressado à frente do seu pessoal em direcção à mata. As mulheres e os filhos seguiam-no em fila indiana. Não teve mais um olhar, mantinha o porte altivo e digno que sempre lhe conheci. Um a um, vi-os desaparecer entre as árvores, como se a floresta os engolisse. Só a mais pequena, a última da fila, se deteve um instante e, voltando-se, com a boneca de cabelos loiros na mão, fez-me adeus e sorriu, num gesto puro de quem não sabe que se despede para sempre.
Fiquei a olhar o sítio onde desapareceram, aguentando a solidão imensa que me gelava a alma. Quantas traições, quantos abandonos e deslealdades serão necessários para erguer e desfazer um Império? Em quantas praias desertas teremos deixado companheiros? Em quantas matas teremos abandonado gente que em nós confiou? Quantas vezes desertámos das responsabilidades que assumimos? Quantas vezes traímos?
Desloquei e, já no ar, dei por mim a pedir a Deus protecção para o camarada perdido.
No dia seguinte, o mecânico que passou inspecção ao avião, entregou-me uma medalha de Cruz de Guerra que encontrou caída no chão, junto ao banco em que o Chissoia se sentara.
Carlos Acabado