AINDA O VINTECINCOBARRAQUATRO
Ao longo de mais de dez anos a escrever para jornais, blogs e até, imaginem, livros, julgo ter sido coerente com a minha linha de pensamento, no que respeita a liberdade, governos, democracias, ditaduras, etc.
Sempre fui um crítico do pós “vintecincobarraquatro” pelos crimes que todos vimos cometerem-se em nome da liberdade alcançada. Da desmoralização dos valores nacionais, do desbarato da economia, da luta fratricida que alguns arvorados em generais quiseram promover e da tristeza de ver um país levado à indiferença, como que num autismo colectivo.
E pela vergonha que foi a “descolonização exemplar” que abandonou povos com quem tínhamos ligações antigas e onde tantos confiaram em nós.
E pelas risadas que deram nas nossas caras, aos que por lá vivemos, que tudo abandonámos e a quem foram negados dezenas de anos de trabalho para chegar à velhice com pensão de esmoler.
É triste olhar para trás e ver o quanto de humanidade se jogou no lixo! Ainda hoje nas ex-colónias são os portugueses que os africanos mais apreciam. Mesmo depois duma feroz e idiota guerra colonial, talvez fossemos o único povo no mundo a abraçar um ex-combatente inimigo, assim que as hostilidades foram terminadas.
Há muito livro escrito sobre esse período, mas é difícil encontrar um só que seja, cujo autor não tenha deixado uma parte grande do seu coração junto daqueles povos.
Não foram os “pôr-do-sol” no Mussulo ou na Inhaca, nem as caçadas às pacaças ou aos leões, nem as belezas da Tundavala, da Ilha de Moçambique ou do deserto do Namibe, mas sim as gentes que nos acompanharam, que partilharam connosco os momentos de alegria e preocupação, que tantas vezes nos ofereciam o tecto das suas humildes palhotas para que não passássemos a noite ao relento.
Foram as conversas naqueles humilíssimos bares, tanto na cidade como no interior, bebendo umas Cucas e partilhando histórias de carros atascados na lama, salvos pela população local, de caçadas para chorar a rir – Haca, patrão, falhaste mesmo essa perdiz! – de valentes soldados que se viram no meio de “fogos amigos” e recorreram ao Exército Português e mais uma infinidade de contos que a memória teima em conservar como um bem de valor inestimável.
E agora volto a depoimentos de militares dos “Comandos”, a tropa de elite criada em Angola, que os “gloriosos vendilhões da pátria”, pós 25/04 quiseram desfazer e calar, com algumas passagens que ilustram esse sentimento do dever cumprido entre inimigos e as populações.
Da revista da Associação dos Comandos, MAMA SUME – um grito de guerra de uma etnia africana do sul de Angola e que traduz "AQUI ESTAMOS" ! – com a devida vénia reproduzo um pouco da memória dum combatente, José Zeferino Pina Navarro ao tempo Alferes dos Comandos:
RETALHOS MEUS
Numa operação que fizemos ao rico Vale do Loge, não muito longe já da sua confluência com o grande Dange, onde, após o assalto a uma sanzala terrorista, sem saber de onde havia surgido, acabei por ter agarrado às pernas o Joãozinho, um pequenito aí de uns 4 aninhos, que depois peguei ao colo como a coisa mais preciosa do mundo no meio de toda aquela infernal confusão e alarido, e de como foi ele que me comunicou a ternura de sentir amor numa refrega, assunto maluco de adulto, cujo único sentido é sempre a vã cobiça de todas as partes em jogo?
No caminho de regresso, quilómetros e quilómetros a fio, primeiro, ao longo do rio, e depois, mata adentro, a corta mato, para fugirmos às emboscadas, cada vez mais violentas, que incolumemente nos montavam a partir da outra margem, nunca deixei de estreitar o menino ao colo que, no meio daquele alarido todo, se agarrava a mim como uma lapinha se segura à rocha...
E quando, algumas horas depois, vales e florestas, já completamente exausto, tinha que ser ajudado pelos nossos queridos camaradas, pois estava permanentemente a cair e já não era capaz de me ter nas pernas, e isto porque não podia deixar o João, pois que mo queriam tirar para me aliviarem, ele, em plena floresta, no meio da noite, desatava num berreiro que ecoava por quilómetros sem fim, como uma trombeta apocalíptica? Recordo do inusitado da situação e do perigo extremo que isso representava para todos nós, completamente desconhecedores do terreno e da região, sujeitos a virmos a ser cercados, e de como, mesmo assim, todos nós acalentávamos o miúdo sem nos passar, jamais, pela cabeça, deixá-lo ali, e de como eu o carregava como um talismã de amor a dar-me força ao espírito enquanto o corpo se exauria até ao esgotamento?
Ainda me lembro também dos nossos queridos companheiros, enquanto me soerguiam pelos braços, da solicitude e carinho com que o faziam e das palavras de ânimo que me diziam, como se fosse uma criança, para me animar "Meu alferes, é já ali... já falta pouco... vamos, mais um bocadinho... só mais um bocadinho...", bocadinho que, afinal, nunca mais chegava... e era continuar, continuar, pois que sabiam lá eles onde é que nós nos encontrávamos... onde?
E assim continuámos, não sei por quanto tempo, quantos quilómetros, sempre com o pequenito fardo, até que, por fim, lá se nos deparou a picada onde supúnhamos estarem à nossa espera para nos recolherem.
Que, aliás, nem estava lá ninguém, pois, em boa verdade, quem poderia saber o local e hora a que haveríamos de chegar, para lá estarem à nossa espera?... Assim, se a desilusão foi alguma, também não perdemos muito tempo a perdê-la, e logo tratámos de achar local onde pudéssemos pernoitar, o que se nos apresentou na clareira de um palmar de uma antiga fazenda, então abandonada, após os seus donos e trabalhadores haverem sido trucidados à catanada, como aconteceu em muitas outras dezenas de fazendas que então havia na região.
Após termos montado a guarda, a última coisa de que eu me lembro foi o de abrir o camuflado, deitar o Joãozinho sobre o meu peito, correr o fecho, e apagar-me completamente até à manhã do dia seguinte.
Nesse resto de horas que a noite me concedeu, o que de facto eu esqueci foi a guerra, o mundo, o cansaço e todas as más recordações do dia e da vida.
Quantas qualidades de paciência e de valor humano não tiveram que evidenciar todos estes nossos camaradas, que também são homens e numa situação de tão extrema exigência táctica é crucialidade de sobrevivência, sem que nunca tenham perdido tanto da noção da sua responsabilidade militar, como a devida a sua conduta humana. Realmente não há dúvida que sempre que, em todos os tempos, raças, e lugares, o amor permanece acima e além de toda a confusão, não há dúvida que é aí que se encontra o Homem na sua maior e real dimensão, de criatura que é de Deus.
Claro que desse momento pessoal não tenho a fotografia, como é óbvio... e, ainda que houvesse máquina, que não havia, quem se atreveria a disparar um flash no meio das trevas de uma mata cerrada, ocupada pelos inimigos?... Mas ele era muito engraçado e sempre que lhe perguntávamos "Olha lá, tu és turra?" Ele respondia "Eu turra? Nunca mais eras!...". Este creio que veio para Portugal, cá estudou e fez a sua vida.
Faria isto um americano, um inglês, chinês, muçulmano, judeu, sérvio? Jamais. Muito menos um rosa coutinho ou um otelo que nem os
companheiros de armas respeitaram!
Rio de Janeiro, 04/06/2012