Heresias - VI
A ARITMÉTICA DO DESEMPREGO
(*)
“Que horrível surpresa! Desemprego nos 15%! Quem poderia imaginar?” diz o pessoal do Governo.“Malandros! Que só espalham desgraças!” ouve-se para as bandas da Oposição.
v Não me parece que esta desgarrada entre lamentações e imprecações leve longe. Interessante, sim, seria ter uma ideia, não tanto do que nos espera, mas daquilo que deveríamos razoavelmente esperar.
v Para tal, o ponto de partida será 2006 (o último ano das “vacas gordas”). Ignorando, porém, o malabarismo estatístico que exclui dos números do desemprego todos aqueles que desistiram já de procurar trabalho. Aqui o que interessa é a população residente em
Portugal, em idade de trabalhar e que tenha alguma vez procurado trabalho remunerado (excluo, pois, as “fadas do lar” full-time).
v Vou repartir essa população (a população activa) pelos seguintes grupos:
- Grupo A – população que trabalha para satisfazer a procura externa – quer directamente, quer ao longo da cadeia de produção (incluindo o turismo que nos visita, naturalmente);
- Grupo B – população que trabalha para satisfazer a procura interna (incluindo a população empregue na função pública) – de novo, quer directamente, quer ao longo da cadeia de produção;
- Grupo C – população sem trabalho (excepto a que transita entre empregos).
v O Grupo C, obviamente, não contribui para o PIB (esqueçamos, por momentos, a economia paralela) – e, em 2006, andaria pelos 7% da população activa. Por esse tempo, o número de funcionários públicos seria um pouco mais do dobro do número de desempregados.
v Desconheço estatísticas “por fileira” (que, forçosamente, teriam de assentar na contagem, não de cabeças, mas de tempos trabalhados por destino da produção: procura interna/procura externa), mas a cobertura das importações pelas exportações na Balança
de Bens e Serviços pode dar uma pista: o Grupo A seria 55% do Grupo B.
NOTA: A BTC não serve tão bem para este efeito porque inclui transferências unilaterais e outros movimentos transfronteiriços que, ou não têm origem na esfera real da economia (logo, no emprego), ou envolvem uma parcela insignificante da população activa.
v Assim, a traço largo, quando a crise nos bateu à porta, a população activa teria mais ou menos a seguinte composição: Grupo A, 33%; Grupo B, 60% (14%-15% na função pública); Grupo C, 7%.
v Desconheço o que possa ser visto como uma distribuição harmoniosa entre os Grupos A e B. Mas numa economia que tem de importar muito do que come, quase toda a energia que usa e boa parte das matérias que transforma (para além de outros bens e serviços cuja procura é mais “elástica”), seria de esperar que o Grupo A (o que gera haveres sobre o exterior) tivesse muito maior peso. Desde logo, porque o consumo de alimentos e de energia (que há que comprar no exterior, recordo) é proporcional, não à população que trabalha, mas à população total – e não varia tanto assim com as flutuações do rendimento disponível.
v Chegou-se a este ponto da maneira mais displicente que é possível imaginar:
- Os Bancos a privilegiarem o financiamento da procura interna e as actividades orientadas para satisfazê-la (construção,
habitação, distribuição) – o que não dava um trabalho por aí além;
- Os Governos, iludidos pelos impostos indirectos que cobravam, iam expandindo a Despesa Pública – sem perceberem que as receitas fiscais provinham (e dependiam), em larga medida, da procura interna que o crédito bancário estava a alavancar.
v Mas nem os Bancos se limitavam a reciclar a liquidez da economia, nem os Governos se limitavam a gastar as receitas fiscais que cobravam. Uns e outros, a partir de 1997-99, endividavam-se despreocupadamente no exterior. Os Bancos para concorrerem entre eles por quota de mercado – no financiamento da procura interna, obviamente. Os Governos para fazerem mais umas obras destinadas à procura interna – ou para aumentarem os quadros da função pública.
v Os Bancos poderiam ter-se atido aos recursos financeiros internos? Poderiam. Mas teriam de reduzir os empréstimos às importações e de remunerar melhor os depósitos – e veriam, então, os seus Balanços expandir-se, inevitavelmente, ao ritmo do PIB. Que, diga-se de passagem, era bastante vagaroso. Logo, “no big results, no big bonus”.
v Os Governos poderiam ter optado por orçamentos equilibrados? Poderiam. Mas haveria menos obra para mostrar – e mais desassossego nas hostes dos respectivos partidos. E não poderiam ter optado por emitir Dívida Pública cá dentro? Poderiam. Mas teriam de sofisticar os empréstimos internos e de remunerá-los melhor – o que poria frontalmente em causa a “paz podre” que, a tão duras penas, os Bancos tinham conseguido instalar no mercado da captação do aforro. E não teria o mesmo glamour,
v Deste modo, Governos e Bancos, cada um à sua maneira, endividavam-se no exterior para despejar liquidez sobre a procura interna, estimulando-a em crescendo: (i) gastos públicos, subsídios vários (em dinheiro e em espécie), serviços tendencialmente gratuitos - à conta dos Governos; (ii) endividamento - cortesia dos Bancos. Tudo empolava o rendimento disponível que a estabilidade cambial convertia em sucessivos acréscimos de poder de compra – e que a propensão para importar (elevada), por sua vez, convertia em deficits da BTC.
v E aqui, sim, a BTC dá uma pista do excesso de procura interna: ano após ano, mais de 10% do PIB. Ora, este excesso tem de ser: (i) primeiramente, sustido - para travar o crescimento da Dívida Externa; (ii) depois, revertido – para que a Dívida Externa (a do Estado e a dos Bancos) retorne a um volume que possa ser gerido.
v Isto significa uma quebra na procura interna (e do correspondente rendimento disponível) a dois tempos: (i) de imediato, uma quebra absoluta não inferior a 10% do PIB; (ii) ao longo de vários anos, um crescimento entre 2%-3% abaixo do crescimento do PIB (o que pode significar uma contracção também).
v Nada de surpreendente. No rescaldo de uma “bolha” de crédito bancário (e as receitas fiscais também “surfavam” esta “bolha”), um tradicional processo de desendividamento: do Estado (mais carga fiscal, menos gastos públicos), dos Bancos (ou reforçam Capitais Próprios ou fecham para obras), das Empresas (alguns casos de recapitalização, muitos casos de insolvência) e das Famílias (insolvências e mais insolvências).
v Tudo isto augura tempos difíceis: (i) para os Bancos – a verem o crédito malparado a arrastar rio abaixo os seus preciosos Capitais Próprios; (ii) para os Governos – porque as receitas fiscais, em valor absoluto, descem para um nível bem mais modesto, inferior às grandes rubricas orçamentais consideradas politicamente intocáveis.
v Balanços dos Bancos a encolher, Despesa Pública a encolher – a liquidez que circula na economia só não encolherá também se a procura externa (e com ela o rendimento gerado no Grupo A) compensar, expandindo-se aceleradamente (acima de 30%/ano, mas a que o investimento directo estrangeiro daria uma ajuda). O que, convenhamos, não acontece de um dia para o outro.
v É o Grupo B que irá sofrer por inteiro o choque da contracção da procura interna e os efeitos da redução da liquidez em circulação. Tudo aponta para que, sem o apoio financeiro da troika, a redução da procura interna (por via conjugada da tributação, da queda nos salários e do desendividamento) se situaria, no imediato, em 10%-12% do PIB. O que, traduzido em desemprego, corresponderia a 17%-20% da população activa – e que só a emigração poderia atenuar.
v Assim, como não parece sensato
esperar que o nível de desemprego estrutural (os tais 7%, à partida) baixe durante o processo de ajustamento “macro”, a taxa de desemprego que deveríamos esperar, sem troika, oscilaria entre 24% e 27% da população activa (que só a expansão do rendimento gerado pelo Grupo A, o investimento directo estrangeiro e a emigração poderiam puxar para baixo). A par da Espanha, da Grécia e da Irlanda, aliás.
v Até que ponto o pacote financeiro que a troika vai entregando às fatias amortecerá este choque? Não sei responder.