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A bem da Nação

LIDO COM INTERESSE – 55

 

 

Título: A ESCAVAÇÃO

Autor: Andrei Platónov

Tradutor: António Pescada

Editora: ANTÍGONA, Lisboa

Edição: 1ª, Outubro de 2011

 

 

 

O camarada activista não tinha nada para mandar Voschev fazer e por isso decretou que durante a noite ele fosse apalpar as galinhas todas do kolkhoze a ver se tinham ovo. Não tinham! Porquê? Porque já não havia galos. E como fora precisamente o camarada activista que comera o último galo, depressa se constituiu comité para apurar quem tinha comido o primeiro galo. Esse, sim, um perigoso agente
reaccionário que deveria ser punido.

 

Mas assim que um velho mujique apareceu com uma ave masculina parecida com um galináceo, logo a busca do comedor do primeiro galo foi esquecida e se decretou nova tarefa que pudesse motivar os descrentes nas virtualidades da colectivização agrícola. E essa nova tarefa foi a construção duma jangada para abarrotar de reaccionários e mandá-los rio abaixo até ao oceano...

 

- Vejam, camaradas, que até os animais gostam do socialismo!

 

Percorrida alguma distância, pararam no caminho porque do lado direito da rua se abriram sem acção humana uns portões e por eles começaram a sair calmamente alguns cavalos. Em passo regular, sem baixarem as cabeças para o alimento que crescia da terra, os cavalos percorreram a rua em massa compacta e desceram para um barranco onde havia água. Depois de matarem a sede, entraram na água e ali ficaram algum tempo para a sua higiene e em seguida subiram para a margem seca e voltaram pelo mesmo caminho, sem perderem a ordem nem a coesão entre eles. Mas assim que chegaram às primeiras casas, os cavalos dispersaram: um deles parou junto a um telhado de palha a começou a arrancá-la; outro, inclinando-se, apanhou com a boca alguns tufos de um magro feno; enquanto os cavalos mais soturnos entravam nas quintas e ali apanhavam, nos seus lugares predilectos e já conhecidos, um feixe que cada qual levava na boca para a rua. Cada animal apanhou a porção de comida que podia e levava-a cuidadosamente em direcção àqueles portões de onde antes todos os cavalos tinham saído. Os que primeiro chegaram pararam junto aos portões comuns e esperaram por toda a restante massa cavalar; quando já estavam todos reunidos, o animal da frente empurrou os portões com a cabeça e toda a formação de cavalos entrou para o pátio com a comida. No pátio, abriram as bocas, o alimento caiu delas numa pilha central e então o gado socializado dispôs-se em volta e começou a comer devagar, submetendo-se à disciplina de maneira organizada, sem o cuidado do homem.

 

Voschev, espantado, olhava os animais por uma fresta dos portões; surpreendia-o a paz de espírito daquele gado mastigador, como se todos os cavalos se tivessem convencido com precisão do sentido kolkhoziano da vida e só ele vivia e sofria mais do que um cavalo.

 

Esta é a obra-prima de Platónov constituindo um perturbador romance distópico que retrata um grupo de operários que escava os alicerces de um monstruoso edifício, a Casa do Proletariado, promessa de um futuro risonho convertida em atroz abismo que suga impiedosamente vidas e almas.

 

Violenta crítica à construção do socialismo soviético e negra reflexão sobre o preço do progresso e sacrifícios aterradores feitos pelo povo em nome de objectivos absurdos, esta obra, escrita em 1930, foi somente publicada na Rússia em finais dos anos 80, devido à censura. Desiludido, o autor evoca sobretudo o horror daquele regime político e, simultaneamente, uma tragédia universal e apocalíptica.

 

Durante a Revolução, os cães ladravam dia e noite por toda a Rússia mas agora tinham-se calado: começou o trabalho e os trabalhadores dormem em silencio. O cão está aborrecido: vive apenas por ter nascido, como eu – disse Voschev.

  

- Quem traz no bolso das calças o cartão do Partido, deve preocupar-se incessantemente em trazer o entusiasmo no corpo. O proletariado vive para o entusiasmo, camarada Voschev! Nas mãos de um proprietário privado, até um bode é uma alavanca do capitalismo.

 

O activista demorou-se a redigir o relatório sobre a execução da colectivização mas não pôde pôr uma vírgula depois da palavra «kulak» porque na Directiva que definia as regras dos relatórios não havia vírgula.

 

 Andrei Platónov (1899-1951), autor até hoje inédito em Portugal, foi descoberto pelo Ocidente nas últimas décadas do século XX, um fenómeno que resultou na tradução dos seus vários livros em diversas línguas e na reescrita da História da literatura russa.

 

Caloroso partidário da Revolução de 1917, poucos autores escreveram de forma mais cáustica e incisiva sobre as catastróficas consequências do processo político sequente aos tempos triunfantes iniciais mas, apesar de sucessivamente condenado pelo regime
então vigente, não deixou de se manter fiel ao sonho inicial.

 

“A escavação” é um grito contra a falta de sonhos a que o comunismo conduziu os povos a que se impôs.

 

Do que nós, portugueses, nos livrámos em 1975!!!

 

Lisboa, Maio de 2012

 

 Henrique Salles da Fonseca

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