LIDO COM INTERESSE – 54
Título: POESIA CUBANA CONTEMPORÂNEA
Coordenador: Pedro Marqués de Armas
Tradutor: Jorge Melícias
Editora: ANTÍGONA, Lisboa
Edição: 1ª, Março de 2009
Conheço Cuba e por isso sei que nem tudo são trevas: há quem se ria ao lado de quem chora; há quem viva «na maior» ao lado de quem usa as meias rotas; há quem acredite na utopia ao lado de quem só pensa em fugir do que lhe parece o Inferno.
Cheguei a Havana no dia seguinte ao que pareceria ter sido um bombardeamento aéreo, tanta a ruína e degradação. Mas para atender aos usos e costumes dos «viciosos burgueses estrangeiros», o Hotel Nacional refulgia no seu amarelo ainda a cheirar a pintado de fresco. Foi aí que dei de gorjeta ao velho «maletero» a nota mais pequena que tinha no bolso e o homenzinho quase deu saltos de contente quando constatou que eu lhe dera um ordenado mensal; era a idosa pianista que nos acompanhava às refeições que tinha as meias rotas e a cicerona do Museu da Revolução foi disfarçadamente ao hotel buscar uma t-shirt que lhe prometêramos.
Em Cuba, o eufemismo de prostituição é «relações públicas» e a mentira impera em toda a parte de modo a que o povo se julgue no
paraíso e que nós, os turistas, somos uns viciosos do pior.
E no meio de tudo isto, até há quem verseje. Versos ambíguos ou contestatários. Os primeiros lá dentro; os segundos na diáspora.
Só na década de 80 a poesia cubana recupera a sua força libertando-se, a pouco e pouco, do lastro da ideologia. Nesta antologia
mostra-se uma dezena de poetas começando pelos surgidos por volta de 1970 e concluindo com alguns que já se puderam influenciar pela Perestroika. De qualquer modo, todos nascidos depois do triunfo da Revolução castrista e educados sob a experimentação guevarista do Homem Novo, com a qual muitos rompem e por isso lhe sofrem as previsíveis consequências.
A poesia cubana encerra uma história rica que a coloca entre as mais fortes da América Latina. O seu estranho vigor não assenta apenas
no facto de contar com poetas de alcance universal (José Martí, Nicolás Guillén, Dulce Maria Loynaz ou José Lezama Lima) e com outras figuras imprescindíveis ainda que menos conhecidas internacionalmente (Julián del Casal, Virgilio Piñera, Gaston Baquero, atc.) mas também nalgumas particularidades da sua tradição que de algum modo a diferenciam das outras poesias do continente.
Umas dessas particularidades é a sustentada tensão entre poesia e História, que chega até aos nossos dias, não isenta dos traumas que
têm o seu ponto de partida nos próprios começos do processo literário cubano. Ler a História como poesia ocultando a sua extrema violência e a poesia como se tratasse de premonições históricas, eis as constantes num país cuja identidade nacional só se estabelece a saltos e em que o tema não poucas vezes foi a própria falta de identidade.
(*) Reina Maria Rodriguez, natural de Havana onde nasceu em 1952, é licenciada em literatura hispano-americana e actualmente dirige em Havana o projecto cultural «Casa de Letras» sendo também editora da revista Azoteas. Uma “situacionista” que escreve «à bons entendeurs»:
Eu conheci certo homem, um homem singular.
Cuidava todos os dias e todas as noites da luz do seu farol,
Um farol mediano que não sinalizava muito,
Um farol pequeno para embarcações de pequeno porte
E obscuras povoações de pescadores.
Ali, na sua ilha ele intercambiava com o seu farol as sensações
Esperando todos os dias, todas as noites, essa outra luz
Que não vigia a perseguição de nenhum objecto,
Essa outra luz que não ilumina nada,
Outra luz reflexiva, que atravessa, para dentro,
A distância entre o porto seguro do sítio
E o olho que procura restituir, superficial e transparente,
A ilusão provisória que se eterniza.
(...)
Rolando Sánchez Mejías, nasceu em Holguin no ano de 1959 e em 1993 fundou a revista Diásporas que circulou clandestinamente em Havana até 2002 fazendo frente à política cultural cubana a formulando as mais fortes críticas à tradição literária do país. Reconhecido como um dos melhores poetas e narradores da língua espanhola, os seus textos foram incluídos em antologias da poesia e do conto hispano-americanos do século XX. Desde 1997 que vive exilado em Barcelona.
Se fosse a ti
Não teria esperado tanto.
Esperavas que eu fosse
Ao encontro onde falarias da palavra dor.
De lá para cá
(o tempo corre, querida,
o tempo é um porco veloz
que cruza o bosque da vida!)
Passaram-se muitas coisas.
Entre elas,
A leitura de Proust.
(Se me visses!
Sou mais cínico mais
Gordo e
Caminho meio lerdo
Como uma retrospectiva da morte).
Se fosse a ti não teria esperado tanto
E teria ido com aquele que te dizia
Com uma saudável economia de linguagem:
Casa-te comigo.
(...)
Já me ia esquecendo de outro gato escondido com o rabo de fora: grande profusão de bandeiras canadianas flutuando sobre os mais
relevantes empreendimentos industriais. Todos desconfiamos que se trata de investimentos de «canadianos do sul»...
Cuba, o país da mentira e da poesia «à bons entendeurs».
Lisboa, Maio de 2012,
Henrique Salles da Fonseca
(*) Photo credit: © 1998 Andrés Walliser in http://epc.buffalo.edu/authors/reina/