MUDAR DE VIDA
Portugal sofre uma das crises mais dolorosas e exigentes. De facto existem vários tipos de choques económicos. Os piores vêm das guerras, que arruínam a própria sociedade. Existem também recessões por catástrofes, carestias, obsolescências, mudanças de hábitos. A mais irritante é a crise financeira, que aperta o cinto para pagar tolices da euforia anterior.
A actual situação começa por ser dominada pelo endividamento acumulado. Nisto assemelha-se às duas intervenções do FMI em Portugal, em 1978 e 1983. Mas elementos novos geram sinais insólitos, sobretudo o desemprego inaudito e astronómico. De facto esta crise é muito mais que dívida.
Portugal está hoje muito melhor que há 30 anos. Então era um país pobre e isolado; hoje tem o dobro do nível de vida e forte ligação com parceiros, incluindo moeda comum. Paradoxalmente estas vantagens indiscutíveis estão na origem da dificuldade, pois aumentaram-nos a capacidade de endividamento. Se em 1978 e 1983 havia uns três anos de desvario a pagar, desta vez são mais de quinze. Assim, em 1979 a nossa dívida externa bruta total atingiu o pico de 42% do PIB e em 1984 chegou aos 90%. Desta vez está acima dos 245%.
Mas muito pior que a dimensão do encargo são os enviezamentos que o delírio impôs na estrutura produtiva. Nos anos de loucura muita gente trabalhou em actividades rentáveis apenas por endividamento; muitas empresas faziam negócios porque os clientes se empenhavam. Nisto os gastos do sector público destacam-se, mas havia muito mais. O resultado é que boa parte da nossa economia é balofa, produzindo a preços exagerados coisas que ninguém quer.
Assim o que hoje se sofre não é apenas a travagem de consumo gerada pela austeridade financeira. Largas centenas de milhar de trabalhadores terão de mudar de vida, porque os seus empregos artificiais nunca vão voltar, mesmo que o crescimento retome. Milhares de empresas têm de fechar ou mudar de sector porque o negócio acabou. Importante percentagem da sociedade terá que encontrar
actividades realmente úteis. Portugal sofre uma das crises mais dolorosas e exigentes: a forçada reestruturação de quase vinte anos de distorção produtiva.
O debate político passa ao lado. As vozes que se levantam a pedir programas de crescimento não compreendem a questão. Portugal não precisa de crescer, mas de corrigir a estrutura produtiva para permitir um desenvolvimento sustentável. Uma injecção de fundos, doping empresarial, daria um arrebitar pontual só adiando a solução.
Esta tem como elemento decisivo precisamente aquilo que os portugueses melhor demonstraram em 1978 e 1983: a flexibilidade, que espantou o FMI pela rapidez e facilidade do ajustamento. Programas de reforma que demoravam muitos anos noutras latitudes aqui funcionaram num punhado de meses. Não se pode escamotear o enorme sofrimento envolvido, mas a paciência, imaginação, improvisação e resiliência dos portugueses foram impressionantes.
Desta vez a carga é maior, as exigências da geração superiores e fomos o último país a assumir a necessidade de ajustamento, quase três anos depois de iniciada a crise mundial. Apesar disso vários sinais encorajadores são visíveis. Claro que é tolice exigir já melhorias na conjuntura. Tendo adiado o tratamento para o último momento possível, estamos ainda bem dentro dos inevitáveis meses de queda. Mas os sinais sociais são evidentes.
A emigração, instrumento privilegiado de ajustamentos anteriores, recomeçou em força. Trata-se de um expediente que pode ser triste e perigoso, mas revela espírito inconformado e realizador e tem excelentes propriedades económicas. Também o empreendedorismo, apoio social e solidariedade, traços marcantes da nossa cultura, estão ao rubro. Acima de tudo a serenidade do povo perante a austeridade, incomparável com qualquer parceiro e tão irritante para os extremistas, é trunfo indispensável para a recuperação.
O essencial agora é esquecer tolices e mudar de vida. As gerações anteriores fizeram-no. Será que nós hoje seremos de novo capazes?
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2012-05-14