CHILE – 1
PELA PORTA DOS FUNDOS
Zarpámos de Ushuaia ao fim da tarde num pequeno navio chileno para cerca de 130 passageiros, o N/M Via Australis, para logo de seguida entrarmos no Chile. Curioso o formalismo fronteiriço na linha meã do Canal de Beagle com um piloto argentino até à fronteira e o Comandante do navio a tomar conta da navegação só a partir do momento em que se considerava no Chile.
Nascer do Sol no Estreito de Magalhães
Confesso que a minha entrada no Chile foi historicamente muito menos carregada do que fora na Argentina. Para mim, a História chilena começa com Eduardo Frei, um democrata cristão, na Presidência depois de disputar a corrida eleitoral com o marxista Allende que teve que esperar uns tempos até conseguir a eleição. Seguiram-se três anos de esquerdismo exacerbado conduzindo o país à ruína e a sociedade à ruptura no fim do que Allende se suicidou com a metralhadora que lhe fora oferecida por Fidel Castro que tempos antes andara por ali a incendiar os ânimos. E todos sabemos o que se passou de seguida: houve que relançar a economia e para isso não podia continuar a bagunça. Os ânimos tiveram que serenar, os métodos empregues foram ao estilo estalinista e, ironia, só os estalinistas se queixaram. Depois de Pinochet a História voltou a não existir.
Foi num país sereno e próspero que entrei naquele fim de tarde de 25 de Fevereiro de 2012. E, literalmente, entrei pela porta dos fundos.
O arquipélago por que naquelas latitudes austrais se conclui a América do Sul é quase deserto de gentes pelo que o folclore é inexistente. Uma anciã de 85 anos, sem descendência, será a última representante da comunidade que em tempos ali existiu e os operadores turísticos não estão autorizados a incomodá-la, o que se compreende e aplaude.
O nosso objectivo consistia em pormos pé no Cabo Horn, o ponto a partir do qual nada mais existe a não ser a gelada Antártida. Depois
disso, visitarmos a baía de Wulaia (ilha de Navarino) por onde andou Darwin, os glaciares Piloto e Nena e finalmente a ilha Magdalena para vermos os pinguins de Magalhães.
E como somos uns desportistas, o despertar era às cinco e meia da manhã para termos tempo de tomar um café e comer uma bolacha antes de às seis nos metermos nos Zodiacs com destino às várias incursões previstas. O pequeno-almoço era depois da aventura matinal a que se seguia um período de navegação durante o qual era servido o almoço, antes de mais uma incursão qualquer que haveria de nos abrir o apetite para o jantar.
Será melhor calar-me quanto aos quilos que ganhei...
O Mostrengo não estava lá
Os castelhanófonos chamam-lhe Cabo de Hornos porque os ingleses lhe chamaram Horn traduzindo livremente do inicial Hoorn, cidade natal dos holandeses que por ali navegaram no séc. XVIII. Etimologias à parte, subimos 185 degraus numa escada bem íngreme e lá no topo caminhámos até ao monumento do albatroz que marca o ponto mais austral de tudo o que seja sítio, antes da Antártida propriamente dita. Ninguém teve coragem de se queixar em voz alta quando vimos um companheiro de viagem nas suas 89 Primaveras a fazer-se à escada como se estivesse a tomar um cafezinho. Mas em voz baixa, sabe Deus o que cada um disse.
O «albatroz» no topo do Cabo Horn
O faroleiro é um militar da Armada Chilena que ali faz uma comissão anual de serviço podendo acompanhar-se da respectiva família se
esta estiver pelos ajustes e a missão consiste em manter o farol em funcionamento, assegurar a soberania chilena sobre a zona e prestar alguma informação aos poucos barcos que por ali naveguem. Aqui, sim, o folclore está na emissão dos «certificados» de que nós, os turistas, ali estivemos.
O clima benigno que tivemos parece não ser costumeiro por ali e não deu para distinguir o Atlântico do Pacífico que naquele dia não
apresentavam correntes contrárias nem densidades ou cores diferentes. O Mar de Drake estava calmo e nós viemos de lá sem histórias especiais para contar: o Mostrengo não estava lá naquele fim de mar.
Regressados ao navio, contornámos o Cabo e navegámos até à baía de Wulaia onde visitámos os locais onde Darwin «convenceu» quatro
indígenas a acompanharem-no até Inglaterra. De referir que, em latitude tão fria, aquela gente não usava roupa e se protegia dos agrestes elementos besuntando-se com gordura de foca.
Onde estariam as pegadas de Darwin?
Quando os 3 sobreviventes regressaram de Inglaterra já fluentes em inglês e depois de terem sido recebidos pela rainha (Vitória, creio), rapidamente se despiram e voltaram aos usos e costumes que tinham antes da viagem. Mais: parece que passaram a liderar um movimento que conduziu ao assassinato dos missionários anglicanos que por ali andavam e tudo fizeram para readquirirem a liberdade de que usufruíam antes de os terem lá ido incomodar com ideias que não eram as deles. Houve mesmo quem os tomasse por antropófagos mas parece que isso não passou de balela para evitar que outros brancos se aventurassem por ali e aquelas ilhas passassem para a Coroa Britânica. Mas não foi isso que aconteceu.
Há situações mais confortáveis do que estar entre muitos milhares de toneladas de gelo em movimento e uma parede fixa com mais de 100 metros de altura
Na manhã seguinte visitámos o glaciar Piloto e dali zarpámos navegando o resto do dia e toda a noite em direcção ao Pacífico para vermos o nascer do Sol sobre o Estreito de Magalhães.
Pinguins de Magalhães na Ilha Magdalena
Ali chegados, eram 6 da manhã e lá estávamos nós a entrar nos Zodiacs para vermos os pinguins de Magalhães.
Rumando novamente em direcção a poente, aportámos a Punta Arenas pelas 11 da manhã e desembarcámos.
Pelas três da tarde tomámos o avião rumo a Santiago e eis-me deslumbrado a ver lá de cima um número colossal de mega-glaciares na Cordillera Costera. Afinal, os outros que tínhamos visitado eram meras couvettes quando comparados com estes.
Volto aqui quando pusermos pé em terra novamente.
(continua)
Henrique Salles da Fonseca