ARGENTINA – 10
A LUA
Nuvens benignas atravessadas sem tremeliques de nota, eis-nos a sobrevoar a Patagónia. Começam os lagos a aparecer por aqui e por ali e o avião continua a descer paulatinamente... Até que surge uma imensidão de água a fazer de crianças aos que viramos antes. E lá fomos descendo... até constatarmos que não era ilusão óptica: não fora o lago e diríamos que estávamos a alunar e não a aterrar – nem uma única erva, tudo completamente estéril, deserto.
A pista do aeroporto é na margem do Lago Argentino – é esse o nome dele – e o contraste é tal que mereceu uma foto logo que saímos da manga. Pena foi que não nos tivéssemos lembrado de fotografar também o outro avião que ali estava estacionado de cores branca e azul celeste com letras bem visíveis proclamando que pertencia à “REPÚBLICA ARGENTINA”. Já lá vamos...
A dezena de quilómetros do aeroporto à cidade é de paisagem lunar e logo tentei descortinar a razão de tanta desolação. Os ventos
predominantes sopram da Polinésia para leste mas quando chegam à costa chilena logo encontram os Andes, são empurrados para cima, condensam e a humidade transforma-se em neve. Essa neve faz glaciares nas duas encostas e os que pendem para o lado argentino lá vão criando os lagos que já referi. Mas o vento, esse, continua o seu percurso. Só que já sem a humidade que largara nos Andes e, conjugado com o Sol, «em vez de criar, seca».
Mas Deus é grande e lá permite que a vida prossiga mesmo onde não era suposto ela medrar. Assim, no sentido dos Andes, os arredores de El Calafate transformam-se em estepe e é nessa que se criam os ovinos que deram origem à cidade.
Nunca eu ouvira falar de Gerónimo Berberena. Contudo, a muito educada população local sabe que se trata do verdadeiro fundador da sua cidade. Mais: até deixam que se digam outras coisas pois sabem que ele é que foi o verdadeiro fundador.
Havia por ali «haciendas» de extensíssima produção pecuária com dias de marcha entre elas e sempre que precisavam do mais pequeno
apoio externo, tinham que se deslocar a umas centenas de quilómetros até à capital provincial, Rio Gallegos (pronuncie-se «gaxegos»).
E foi no já longínquo 1915 que Gerónimo Berberena decidiu emigrar da sua Espanha natal para a Argentina a fim de conseguir alimentar a família. Teve sorte: arranjou emprego no dia em que pôs pé em terra, nesse remoto Rio Gallegos, como empregado da Sociedade Anónima de Importação e Exportação da Patagónia. É claro que não discutiu a função que lhe atribuíram: instalar um posto comercial (mercearia, diríamos hoje) no interior da Província para abastecer as «haciendas» por lá perdidas e comprar o que elas tivessem para vender.
E para se resguardar da ventania fria e seca, começou por construir um casinhoto de chapa ondulada lá no meio da estepe, fronteira com o deserto mas à beira de um imenso lago, a trás dumas moitas ressequidas. Esse arbusto é o calafate e, pronto, foi ali mesmo que as pessoas começaram a ir comprar isto e aquilo que a mercearia tinha para vender. E a Sociedade Anónima também comprava a lã que os fazendeiros tinham para vender pelo que as gentes se foram instalando por ali... Passados uns tempos, Berberena decidiu-se por fazer da sua casa um posto de Correio e passados alguns anos foi o próprio Governo argentino que o nomeou Juiz de Direito. Tudo pareceu normal quando ele pediu (e conseguiu) a instalação de uma escola primária e hoje já ninguém poderia imaginar El Calafate sem a sua escola secundária, os seus hotéis, restaurantes, agências bancárias e mais não sei quê, até à casa particular da Presidenta Cristina Kirchner.
Fica assim explicada a presença do avião branco e azul celeste estacionado no aeroporto de El Calafate: Sua Excelência a Presidenta
estava a passar o fim-de-semana (que ela prolongara por Decreto) na sua casa privada na Patagónia.
Passei-lhe à porta a pé e de carro mas não a vi. Foi pena pois que, segundo as fotos, até parece que se apresenta bem!
(continua)
Henrique Salles da Fonseca