HERESIAS - II
(*)
Concerto de concertinas - I
v Se toda a gente bota sentença sobre o acordo na Concertação Social, que mais isto e mais aquilo - porque não eu?
v Mas, primeiro, uma declaração de interesses: creio que o modelo de mercado é, no estado actual da arte, o modo mais razoável de organizar as actividades produtivas, de distribuir o produto social (o “produto”, de ora em diante, para simplificar) e de orientar o excedente: as três dimensões da esfera real da economia.
v A razoabilidade vem-lhe do facto de, contrariamente às alternativas, não fazer da mudança um drama ou uma tragédia: a disponibilidade para mudar está-lhe nos genes, tolerar as mudanças é o seu credo. Só por isso. O bastante para fazer de mim um aficionado do pensamento liberal.
v Se é o modelo óptimo (no sentido de maximizar o produto social, ou de o distribuir com maior equidade), não sei. Sei, sim, que um óptimo só é óptimo relativamente a um dado indicador escolhido de antemão. Escolha-se outro, de entre os muitos que descrevem a realidade, e o óptimo será outro também. Não surpreende, pois, que a temática do “óptimo social” seja fonte de discussões sem fim.
v Garantida que esteja a continuidade da organização social, pelo menos tal qual exista num dado momento (a “reprodução” da sociedade - K. Marx dixit - é uma baliza inamovível neste debate), tudo o mais (a escolha do indicador, por exemplo) pertencerá ao domínio do arbitrário, das preferências pessoais – da ideologia, em suma. E, no catálogo, há ideologias de todas as cores e para todos os gostos.
v O modelo de mercado tem alicerces muito simples. Bastam-lhe: um Estado de Direito (para criar um ambiente de segurança jurídica e inspirar a legítima confiança) e um sistema de pagamento (que nem é forçoso que funcione com eficiência germânica). Aquele, para que as pessoas não temam celebrar contratos; este, para que os contratos possam ser levados a bom porto, a contento das partes. Agora, perfeito, perfeito, não é - por mais que se faça ou diga.
v Não é perfeito porque, sendo um modelo que inscreve as transacções monetárias (contratos de compra e venda que movimentam liquidez) na esfera real da economia, não dispensa a liquidez – mas, hélàs! não dá pistas que conduzam ao que seja o volume óptimo da liquidez. E aí estão os Bancos Centrais a consultar os astros e a agir às apalpadelas (eles não gostam que se diga isto, mas é assim).
v Não é perfeito porque lhe faltam mecanismos que tragam de volta à esfera real da economia quem, por má cabeça ou destino aziago, deixe de participar no processo produtivo e fique totalmente desprovido de liquidez (logo, impedido de contratar). Se nada mais existir senão o direito de contratar, ficar definitivamente sem fichas implica ter de abandonar a mesa de jogo para não mais regressar: sem liquidez/dinheiro, não há como entrar no jogo da distribuição do produto, nem há como decidir sobre o excedente.
v Não é perfeito porque, na ausência de regulação e supervisão, os desequilíbrios entre as partes que contratam (designadamente, quanto à informação relevante e à liquidez/dinheiro disponível) tendem a acentuar-se a tal ponto que a mudança só poderá ter lugar com tons de drama ou, mesmo, traços de tragédia. Não mais a mudança consentida, de que o level playing field contratual é o motor.
v A sabedoria popular identificou, há muito, estas duas últimas imperfeições: “Quem não tem dinheiro, não tem vícios”; “Dinheiro faz dinheiro”. A teoria, porém, distraída, ainda não notou que estas imperfeições, conjugadas, geram dinâmicas que levam à contracção da actividade e do produto – e ao desemprego de vida inteira.
v Vem isto a propósito da Concertação Social, concebida como uma solução para a última das três imperfeições. Reúne Governo (no papel de regulador e supervisor), Confederações Sindicais (em representação, não de todos aqueles que só como empregados por conta de outrem conseguirão participar no processo produtivo, mas dos que têm emprego efectivo) e Confederações Empresariais (dando voz aos que investiram capital nas empresas).
v As ausências fazem-se notar. Como é possível:
(1) Debater condições de trabalho, quando os desempregados não têm assento à mesa da negociação?
(2) Discutir o emprego, quando as iniciativas empresariais por concretizar, a solução maior para criar emprego, não se fazem ouvir?
(3) Manter o Sistema Financeiro ao largo, quando, entre nós, nada se faz sem endividamento?
(4) Ignorar a visão das IPSS, que têm cada vez mais um papel activo na distribuição não contratual (isto é, através de transferências em dinheiro ou em espécie) do produto?
v Ali, discute-se, afinal, como repartir o produto futuro entre os que, naquele momento:
(1) tomam parte na produção;
(2) fazem votos para que, no que lhes toca, nada de fundamental mude.
(cont.)