Chinesices
Curtinhas XCVI
(*)
v “A Dívida Pública portuguesa é lixo (junk)!” Proclamam aos quatro ventos as Agências de Rating que, como é sabido, têm pêlos no coração e a sensibilidade de um pedregulho. E se não é isto que elas, de facto, dizem, é assim que os nossos comentadores as citam – para grande desespero dos indígenas, que se vêem, desde há tempo, enfiados numa gafaria.
v Só que as coisas não são exactamente como estes avisados opinadores as pintam. Na lógica das Agências de Rating, as dívidas que por aí circulam distribuem-se por quatro grandes grupos:
- “Investment grade” (vão de AAA a BBB) - recomendáveis a quem só pretenda o pinga-pinga de rendimentos previsíveis e nenhumas surpresas, chegado o momento de receber o capital de volta;
- “Speculative grade” (que vão de BB+ a B) - boas para quem não tema expor-se a perdas já bastante prováveis, na expectativa de obter ganhos acima da média do mercado;
- “Junk” (que vão de CCC a C) - investimentos do tipo “Tudo (rentabilidades exorbitantes, se os deuses forem gentis) ou Nada (perda total do capital investido, se os deuses estiverem de mau humor)”.
- Enfim, as que já se encontram em incumprimento (D de “Default”), com os credores a terem de lutar por umas migalhas na massa falida - ou de perdoar parte do capital emprestado, na esperança de que nem tudo esteja ainda perdido.
v Dita a experiência que, numa dívida a 10 anos, a probabilidade de perda total: é ligeiramente inferior a 2%, quando tenha sido inicialmente classificada “investment grade”; oscilará entre os 5% e os 25%, se for “speculative grade”; e rondará os 50%, se “junk”. Estas probabilidades já contemplam os casos, quer de morte súbita (quando a dívida cai num ápice para a classe D), quer de degradação
progressiva (quando a dívida vai rebolando lentamente, letras acima, até D).
v Os ratings são opiniões e avisos à navegação nos mercados de dívida. Enquanto opiniões, assentam em princípios, hipóteses, metodologias e dados - mas só os três primeiros são do conhecimento público (basta aceder aos sites das tais Agências). É, por isso, possível apanhá-las em incoerências (dá trabalho, dá...). Agora, pôr em causa ratings, discuti-los, contrapor-lhes opiniões ou palpites diferentes, não faz qualquer sentido.
v Já enquanto avisos têm mais que se diga. São, desde logo, acolhidos por quase todas as Entidades de Investimento Colectivo (Fundos de Investimento, Fundos de Pensões, etc.), solução expedita para fixar critérios de investimento que os investidores possam facilmente verificar.
v Compreensivelmente, são também adoptados pelas principais Bolsas de Valores, quando se trata de estabelecer colaterais (ou
contas margem) que garantam a actividade de quem nelas opere.
v Mais surpreendente, porém, é o facto de os Bancos Centrais da Europa e dos EUA confiarem nestas opiniões para determinar
os Capitais Próprios que consideram necessários à estabilidade e à solidez dos respectivos sistemas financeiros. Poderia ser diferente? Poderia, se os Bancos Centrais reconhecessem que são plenamente responsáveis por tudo aquilo que fazem ou deixam de fazer.
v Em vista disto, as consequências para uma dívida que veja o seu rating despromovido são fáceis de enunciar:
(1) Entidades de Investimento Colectivo a ter de retirá-la das suas carteiras - mas outras (talvez em menor número) a lançar-lhe olhos gulosos;
(2) Bolsas a exigirem dos operadores, ou que reforcem garantias, ou que reduzam a sua actividade (aqui não há comportamentos em sentido inverso, que contrabalancem as intenções de venda);
(3) Supervisores a fazerem finca-pé, ou em mais Capitais Próprios, ou em menos Balanço (aqui, também, o movimento é de sentido único).
v As coisas são como são, e as Agências de Rating só têm a temer o dia em que os Reguladores de todo o mundo exijam, a elas
e a quem emite dívida notada, que divulguem também, e na íntegra, os dados que inspiram essas opiniões e esses avisos – já que tais dados nunca chegam ao conhecimento dos mercados (uma vez mais, a cumplicidade negligente de Reguladores e Supervisores).
v Eu sei, Leitor, que isto é uma chinesice. Mas alguém tem de vir a público dizer que a Dívida Pública portuguesa ainda não é lixo (junk). Talvez lá chegue um dia, empurrada pela mediocridade que nos rodeia. Por enquanto, é só “speculative grade”.
v Virando a página. A entrada de uma empresa chinesa no capital da EDP tem dado pano para mangas – e eu, perplexo, sem saber o que opinar. Até ao instante em que os órgãos sociais da empresa ficaram finalmente guarnecidos.
v Veio-me, então, à ideia que o longínquo povo português ainda faz parte do mito nas culturas nipónica e chinesa. Para uma, a do Japão, foi a chegada dos portugueses a Tanegashima, no primeiro quartel do séc. XVI, que pôs termo a um período feudal (o shogunato) que não dava mostras de evoluir. Para outra, a da China, apesar da longa convivência em Macau, foi o papel dos jesuítas portugueses na corte imperial - sobretudo no séc. XVIII, com o Imperador manchu Quang Xi e a “questão dos ritos”.
v É por de mais evidente que a China de hoje percebeu há muito aquilo que os nossos políticos de todas as cores ainda não conseguiram ver: a importância estratégica do ocidente ibérico no mundo multi-polar que está em gestação (quase metade do Atlântico Norte e todo o Atlântico Sul estão aqui ancorados). Algo muito apetecível para um Estado que não disfarça a sua ambição de super-potência.
v Mas, estou em crer, era também a oportunidade de emparceirar com o mito que o Governo chinês (alguém tem dúvidas sobre a autoria da decisão que trouxe até nós a “Three Gorges”?) não quis desperdiçar.
v Com este triste episódio das nomeações (que poderá não ter tido o dedo do nosso Governo, mas que espelha na perfeição o que move as nossas pretensas elites) ficou claro para todos, até para quem viva no outro lado do planeta, que, por cá, ainda não saímos da época dos shoguns. Com a singularidade histórica de os nossos shoguns, em vez de se guerrearem na boa tradição samurai, pactuam - para melhor repartirem entre eles os despojos.
v A mensagem de tudo isto é clara: com a nossa venalidade e os nossos interesses mesquinhos, não nos demos ao respeito como parceiros. Falhámos. E, segundo a boa tradição oriental, quem não é respeitado como parceiro, ou é visto como inimigo, ou é tratado como um servo. Chinesices, está bem de ver.
A. PALHINHA MACHADO