2012 em euforia, na nossa mitologia
O mito das duas irmãs amicíssimas
– Procne e Filomela –
E de Tereu, casado com aquela,
Mas que violou esta por amor dela,
E lhe arrancou a língua para que ela,
Tagarela,
Não contasse àquela a esparrela
Com que este a desgraçara
- Pobrezinha dela! -
E que afinal redundaria na transformação
- E Deus nos livre de tal mistificação! -
Das duas irmãzinhas
Tão amiguinhas,
Em avezinhas
- Um rouxinol e uma andorinha –,
Está sugerido na fábula que segue,
Do La Fontaine,
“O Milhafre e o Rouxinol”.
Mas também se suspeita que Tereu
Foi feito poupa, por culpa sua,
Da incontida paixão,
Pela bela Filomela,
Já anteriormente, aliás,
Castigado pela esposa Procne
Que lhe cozinhou o filho
E o fez comê-lo,
- Pobre rapaz! -
Num horroroso acto de canibalismo
Ou talvez antes por ancestral
Desumano e vingativo
Maquiavelismo
Próprio do homem
Seja velho ou jovem,
O que já Medeia,
Em vingança rude e feia,
Fizera ao seu Jasão,
E como Santo António atacara
Nos seus peixes comilões,
De repugnante piscifagia
Que é como quem diz antropofagia
Segundo Vieira bem lembrou
Naquele tal seu Sermão
Barroco de construção
E, se não, de concepção
Como é nossa condição.
Vejamos a alegoria:
«O Milhafre e o Rouxinol»
«Depois que um Milhafre, ladrão de forte presença
Espalhou o alarme em toda a vizinhança,
Fazendo gritar contra ele os meninos da aldeia,
Um Rouxinol caiu desgraçadamente
Nas amarras das suas garras.
Suplicou-lhe a vida, o arauto da primavera:
“- Pois bem, comer o quê em quem não tem
Senão o trinado som? Quimera bem bera!
Para não lhe chamar burra.
Escutai antes a minha canção:
Contar-vos-ei de Tereu e da sua ciumeira.”
“- Quem é esse Tereu? Será uma iguaria,
Dos milhafres fantasia?”
“- Nada disso; foi um rei cujo violento amor
Me fez sofrer o seu criminoso ardor.
Vou cantar-vos uma canção tão bela
Que vos enleará. O meu canto de truz
A todos apraz.»
Então, lhe replica o Milhafre, sem pejo nenhum:
“- Na verdade, chegámos ao ponto do conto:
Quando estou em jejum,
Vens falar-me em música, pobre Filomela?!
“- Assim falo eu aos reis!”
“- Quando um rei te apanhar, maravilhas lhe recitarás.
De um milhafre, só risos receberás.
Ventre esfomeado não tem orelhas,
Dizem as velhas.»
E assim foi
Que o milhafre previdente
O papou como soe:
Gostosamente.
Mas os nossos milhafres roazes
São bons rapazes.
Não comem rouxinóis
Nem andorinhas de arribação
Porque são
Estômagos exigentes,
Em almas sensíveis e crentes:
Não comem tudo o que lhes vem à mão.
Escolhem os pratos
Como escolhem os fatos:
Com requinte e muita atenção,
Discrição, perversão,
Merecendo de todos
A consideração
Que dá o saber fazer,
Com o saber dizer,
Dissimular, esconder,
Subtrair para somar,
E até mesmo guardar
Em paraísos fiscais
O que lhes sobra dos restos mortais
Dos animais
Que comeram por cá.
Espertos como não há
Que é outra a música deles!
E brutais,
Tais os nossos Imortais.
Afinal, normais,
No carnaval,
Deste nosso ancestral
Paul.