CURTINHAS - 6
EM NOME DE...
Que a reacção violenta e fanática dos que se sentiram ultrajados não nos roube a última réstia de lucidez: os dois argumentos com que os de cá querem justificar a publicação das caricaturas do Profeta, há que dizê-lo alto e bom som, estão viciados.
Que está em causa a liberdade de expressão... Não está. Como não estará quando um editor decide cortar este ou aquele artigo. Porque a liberdade de expressão é um direito individual, não um dever editorial. Se fosse um dever editorial, o que tinham para dizer, então, os media a essa multidão que não tem modo nem jeito de ver alguma vez as suas opiniões publicadas? O que há a debater, sim, é o juízo de oportunidade que trouxe a público algo que, todos sabiam, iria ofender, directa, ostensiva e gratuitamente, as convicções religiosas de outros.
Que os Estados ocidentais são laicos, por princípio... E são. Mas a questão não é essa, porque o referido princípio existe, unicamente, na esfera pública e visa assegurar que nenhum crente, enquanto tal, seja objecto de discriminação por parte dos órgãos do Estado. Na esfera privada, maxime, no plano individual, dizer-se laico é, apenas, viver uma das muitas crenças em que a Humanidade vai sendo fértil e saber que nunca se será prejudicado por isso. E os que, para se desresponsabilizar, vêm esgrimir um princípio de que, afinal, são meros beneficiários, mais não pretendem que reclamar-se de uma superioridade ética/civilizacional, ao arrepio desse mesmo princípio equalizador que insistentemente invocam.
Que o cristianismo e os seus símbolos religiosos mais sagrados, sejam também caricaturados, talvez com maior acidez ainda, isso só prova que a tolerância, entre nós, europeus, é uma virtude mal distribuída. O mérito de tanta serenidade pertencerá, por inteiro, à cultura cristã e à memória sofrida de séculos e séculos de intolerância, de perseguições e de lutas sangrentas.
Por último, os que invocam a liberdade de expressão fariam bem em reflectir na reacção que teriam caso aparecesse nos media uma ficção, uma simples ficção, que ofendesse de forma directa, ostensiva e gratuita os que lhes são queridos, ou aqueles cuja memória veneram. Porque, bem vistas as coisas, à liberdade de imprensa (e, não, de expressão) foi dado um uso que compete aos tribunais qualificar à luz, justamente, do princípio do Estado laico.
A.PALHINHA MACHADO
Fevereiro de 2006