A RTP
Se houver alguém que não tenha memórias destas, não viveu em Portugal nos últimos 25 anos. Cresci num país em que a única televisão era a RTP e depois assisti à chegada das televisões privadas. Para muita gente a RTP era o único meio de comunicação massificada. Não culpo o mercado de nada. Há tantas áreas em que este país horrivelmente uniformizador tem mercado a menos. Mas, de facto, as televisões privadas, precisando das audiências e da publicidade e com a concorrência desleal da estação pública, criaram uma televisão muito diferente da RTP dos anos 80.
A RTP tinha muita parolice e inutilidade. Sabemos que tinha. Era e é uma empresa protegida, usada como arma de propaganda por cada governo. Mas, por exemplo, ainda me sinto em dívida quando lembro que, na faculdade, descobri na RTP2 aquele documentário de Martin Scorsese sobre o cinema americano que hoje existe em DVD. Graças a esse documentário soube de filmes que de outra maneira
não teria visto. Podia dar outros exemplos. Não estarei sozinho.
A RTP é um Adamastor financeiro. Se as pessoas perdessem dois segundos a escrutinar os números da RTP, de certeza que iriam querer, e com absoluta razão, o mostrengo trancado num instante. A RTP tem acumulado passivos em série: 800 milhões de euros em 2009 (cito um livro instrutivo de Eduardo Cintra Torres, A Televisão e o Serviço Público, que merece leitura). Os milhões que chegaram à televisão pública por diversas vias e fontes de financiamento – incluindo uma incrível indemnização compensatória – não serviram de nada. A RTP é um monstro empresarial. Existe a RTP e o Império RTP, com os seus vários canais inúteis, da televisão e da rádio, impossíveis de sustentar. Um monstro que, para além de tudo, continua a oferecer prateleiras, sinecuras, vencimentos intoleráveis para uma empresa tecnicamente falida. A RTP nem faz serviço público. Podia fazer, mas prefere ser antes a televisão do pão e circo com o
saco sem fundo dos nossos impostos.
O Adamastor precisa de uma grande volta. E há mesmo quem pergunte: para que serve? Por que não se entregam os dois canais, ou um, aos privados? Ou, em alternativa, por que não acabar em definitivo com a coisa, como muitos sugerem, saindo o Estado da actividade televisiva? Não é esse o seu lugar.
Permito-me chamar a atenção para isto: nós somos um país em que a esmagadora maioria de portugueses forma a sua opinião praticamente sobre tudo através da televisão. O português acorda e dorme a ver televisão. Não nos iludamos sobre o poder da televisão, do Estado e dos privados, para formatar o espaço público numa sociedade vulnerável. A televisão portuguesa é tão herdeira dos concursos de variedades, inofensivos, como de gente dos privados, convencida de que pode ser o nosso Citizen Kane.
Ora, existe propaganda pública e propaganda privada. Existe informação governamentalizada e informação ao serviço de interesses privados e grupos económicos. Estamos fartos de saber que é assim. Claro que a primeira pagamos, a segunda não. Mas também é verdade que na primeira dispomos de um sem-número de instrumentos de controlo político e democrático que podem e devem funcionar
melhor. Quanto aos privados, são as empresas deles, o dinheiro deles e os segredos deles. Não é a mesma coisa e ainda bem.
Em suma, não recomendo um poder público sem uma televisão pública. E não é tanto por causa do mítico serviço público, entendido na dimensão cultural a que fiz referência. É porque acredito que, em certas situações, o governo pode precisar de um contrapeso para o poder potencialmente manipulador dos grupos privados de comunicação. A televisão é um assunto sério. A RTP deveria
assumir esse papel, defendendo uma certa ideia de público e de equilíbrio contra a organização das facções. Acabem depressa com o Adamastor, mas preservem a RTP.
Jurista
Público 2011-01-02