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A bem da Nação

Goa, Damão e Diu - 3

 

O 15 de Agosto de 1955 no ex-Estado da Índia Portuguesa

A <História> que não foi contada

 


 

O DIA DO SATYAGHRAY

 

Ao entardecer da véspera do dia 15 de Agosto de 1955, era dado o alerta em todas as unidades, com as forças policiais e Guarda Fiscal a tomarem posições dianteiras junto das fronteiras. Caía a noite e as informações recebidas no Quartel General em Pangim, eram de algum modo alarmantes, constando que dezenas de milhares de satyaghras se aprontavam para invadir os Distritos de Goa, Damão e Diu, com a retaguarda apoiada por forças do Exército regular
indiano.

 

Por determinação do Subchefe do Estado Maior do Quartel General, Major Matias, mais tarde adido militar em Londres, foi o autor destas linhas incumbido de o acompanhar na inspecção às diligências estacionadas na fronteira norte. Era noite cerrada, quando partimos de jeep em direcção a Mapuçá, depois da travessia obrigatória, em «ferry-boat», do rio Mandovi.

 

 

Postos de retardamento da ofensiva estavam escalonados nas bermas das estradas e caminhos secundários, por vezes causando calafrios, devido ao aparecimento repentino dos nossos militares, que aos gritos estridentes de «alto», de armas aperradas, nos apontavam pequenos mas potentes holofotes, encandeando a nossa visão.

 

Passada a cidade de Mapuçá, com uma curta paragem no Esquadrão de Cavalaria, a fim do Major Matias se inteirar da situação, seguimos com destino à vila de Perném, depois de passarmos Colvale e atravessarmos o rio Chaporá.

 

Em Perném, onde chegámos pela alva da manhã, as notícias nada tinham de animadoras. O Alferes responsável pela segurança e defesa daquela vila informava que milhares de satyaghras estavam postados do outro lado da fronteira prontos a avançar. Tomada a primeira refeição do dia, partimos com destino a Tiracol, rodeados ainda de maiores precauções.

 

À medida que nos entranhávamos na zona fronteiriça os acontecimentos precipitavam-se. Bandeiras da União Indiana estavam hasteadas nas cabanas que ladeavam a aldeia de Corgão. Recebemos ordens para as retirar, tarefa que poderia ser simples, se alguns dos paus das bandeiras não estivessem em contacto com petardos, enterrados no solo e camuflados pela vegetação.

 

Depois deste moroso trabalho, sem incidentes, um numeroso grupo de satyaghras surge-nos pela frente à entrada da aldeia. Após uma curta refrega em que não houve vítimas, os invasores rendem-se aos quatro ocupantes do jeep. Via rádio pedimos reforços a fim de tomarem conta dos detidos e depois destes terem sido entregues às autoridades policiais, continuámos a estafante caminhada para Tiracol.

 

À entrada da aldeia de Arambole, o confronto foi mais duro com os antagonistas a apresentarem-se em muito maior número e dando mostras de pretenderem atacar a nossa viatura. A breve escaramuça foi filmada por dois correspondentes de guerra estrangeiros, havendo a lamentar a morte de dois satyaghras e ferimentos graves noutro, vitimados por disparos de uma patrulha que não se apercebeu do esforço que estávamos a fazer para os capturar sem violência.

 


 

Igreja matriz - Pangim

Esta peripécia foi objecto de uma extensa reportagem
ilustrada no jornal «India Express», de 28 de Agosto, em que o autor desta resenha é apresentado sem culpa alguma, como o principal protagonista.

 

Dominados os prevaricadores, tivemos que aguardar a chegada de reforços para encetarmos a viagem com destino a Tiracol.

 

Após estes percalços, prosseguimos viagem, entrando-se numa das zonas mais turbulentas deste histórico 15 de Agosto de 1955. Por todos os pontos fronteiriços os satyaghras entravam, apesar dos esforços da Polícia reforçada por militares para os suster, uma vez que toda a fronteira de Goa é propícia a infiltrações em virtude de ser densamente arborizada.

 

Em Quirapanim, no posto da Guarda Fiscal, embarcámos na lancha daquela corporação, percorrendo o rio Tiracol até à fortaleza do mesmo nome, travessia que durou pouco mais de trinta minutos e feita com o credo na boca, devido à proximidade do território da União Indiana. Em Tiracol, o ambiente era calmo, com o Tenente Namora a comandar a guarnição da fortaleza.

 

Horas depois, e com uma ração de campanha a saciar o apetite, ouvimos uma infernal algazarra, vinda do declive sobranceiro à histórica fortaleza. Lá estavam, muitas centenas de satyaghras empunhando dísticos e bandeiras na tentativa de assaltarem a fortaleza.

 

Prontos para o pior, esperámos a investida. Como tal não sucedesse, iniciámos o regresso, desta vez com destino às diligências postadas na fronteira nordeste. A travessia do rio Tiracol fez-se na direcção da aldeia de Querim, em barco a remos, aldeia que fica na margem oposta e defronte do velho baluarte, que no seu interior possui uma ermida dedicada a Nossa Senhora.

 

Em Querim, tomámos o jeep, que se tinha deslocado de Quirapanim e por caminhos perigosos e impróprios para a circulação de uma viatura, prosseguimos na nossa odisseia. Sinquervale, Doramarogo e Maulinguém, onde estava instalada a carreira de tiro militar, eram palcos de confrontos violentos, com as suas pequenas guarnições a expulsarem os indianos para o outro lado da fronteira.

 

Entrámos também nestas cenas sem que antes e nos pontos mais setentrionais do território, tivéssemos assistido e participado na expulsão dos satyaghras. Mas foi naqueles remotos lugarejos que os embates atingiram o auge.

 

Na vila de Bicholim, já se tinham feito estragos, mas após poucas horas da sua entrada, foram repelidos, muitos deles ficando prisioneiros das autoridades portuguesas. Em Valpoi, o panorama foi o mesmo com rijas escaramuças para expulsarem as hostes invasoras. O pessoal civil a trabalhar em obras militares e a própria população auxiliou as forças da ordem a expulsar os assaltantes.

 

Após um frugal jantar onde o cansaço era visível no rosto de todos, rumámos pela calada da noite ao ponto de partida – Pangim. O regresso foi feito sem incidentes, mas por toda a parte eram notórios os vestígios da passagem satyaghray. Pelas aldeias, os habitantes em alvoroço e ainda não refeitos dos acontecimentos do dia e viaturas de toda a espécie tombadas e danificadas. Os militares e polícias retemperavam-se do grande esforço dispendido.

 

Chegados ao Quartel-General fomos felicitados por toda a gente merecendo especial citação as palavras do general José Filipe de Barros Rodrigues, Chefe do Estado Maior do Exército, que se encontrava em Goa, em missão de inspecção, e para quem directamente trabalhei quando prestava serviço no Conselho Superior do Exército, em Lisboa, que teve a gentileza de me louvar em Ordem de serviço.

 

O Coronel do CEM, Antunes, Chefe da Repartição de Reorganização do Exército do Estado Maior, em Lisboa, que acompanhava o general Barros Rodrigues, também dirigiu palavras de louvor à equipa dos quatro no jeep. (1)

 

Mas a proclamada invasão satyaghray ainda não tinha terminado. Na região sul, as notícias chegadas ao Quartel General, faziam prever que ainda havia muito trabalho para fazer, embora o impacto inicial tivesse arrefecido.

 

Entretanto, na madrugada do dia 16, chegava a informação que duas Companhias do Exército regular indiano, tinham atravessado a fronteira, em Tiném, vila fronteiriça da zona centro e estação do caminho-de-ferro que se estende até Mormugão.

 

Foram horas de expectativa que causaram sérias apreensões nas altas esferas militares, mas a borrasca que se avizinhava foi desfeita quando os comandos dessas forças, aos serem cercadas pelas guardas avançadas do Batalhão de Pondá e do Grupo de Cavalaria de Torçanzori, comunicaram que se tinham enganado no caminho, julgando encontrar-se em território da jurisdição indiana.

 

Com a retirada das forças vizinhas, poder-se-á afirmar que o dia mais escaldante e a noite mais longa vividos no então Estado da Índia Portuguesa, antes de 18 de Dezembro de 1961, tinha terminado.

 

Em Damão e Diu, também o movimento popular indiano se fez sentir, mas não com o impacto que se registou em Goa, onde uma dezena de correspondentes de guerra de vários países fez o relato circunstanciado dos acontecimentos, por vezes falhos de verdade.

 

Com este processo de retaliação posto em prática durante muitos anos contra os ingleses, ficava por demais provado que os enclaves portugueses no Hindustão, nunca seriam absorvidos, até porque a sua população continua lá disposta a viver sob a Bandeira das Quinas, embora entre ela houvesse alguns dissidentes.

 

Para aguçar a minha curiosidade, deixei-me ficar para o fim, ficando prisioneiro do Exército indiano, aquando da invasão de 18 de Dezembro de 1961.

 

(1) Este oficial superior, um dos melhores estrategas militares, perdeu a vida num brutal acidente de aviação, em Angola, no auge da guerra naquela ex-colónia portuguesa.

Templo hindu - Manguexa

 

 

FIM

 

Alberto Alecrim

 

Artigo da Revista Macau nº 18 de 1989-edição do Gabinete de Comunicação Social do Governo de Macau
fotografias de Leong Ka Tai  cedidas pelo Instituto Cultural de Macau; cópia fiel

 

http://www.memoriamacaense.org/id305.html

 

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