TEMOS HOMEM!
Curtinhas CIX
TEMOS HOMEM!
v O nosso Presidente não cessa de me surpreender – e não serei caso único, temo bem.
v Agora foi quando veio qualificar de iniquidade fiscal a suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos funcionários públicos.
v Cria eu, na minha santa ignorância (influenciado, talvez, pelo “contrato social” de J. J. Rousseau e pelas sempre sensatas reflexões de I. Berlin), que os impostos se caracterizavam justamente por carecerem, em absoluto, de base contratual: o rendimento seria apropriado (extorquido, dirão uns tantos) no exercício de um poder soberano, a que não corresponde nenhuma contrapartida específica.
v Qual quê! O nosso Presidente acaba de arrumar definitivamente o assunto: se o Governo, forçado pelas circunstâncias, resolve suspender unilateralmente algumas cláusulas do contrato de trabalho da função pública, está, objectivamente, a apropriar-se de rendimentos - logo, a tributar.
v Vejo agora, claramente, que o facto de esses tais rendimentos pretensamente tributados nunca terem sido, nem nunca virem a ser colocados à disposição do pretenso contribuinte (no caso, o funcionário público) é, apenas, um detalhe sem importância. Para todos os efeitos práticos, é como se a mão direita se apressasse a tirar aquilo que a mão esquerda acabava de dar.
v Eis uma tese prenhe de ensinamentos. Se, quando está em cena o Estado, “não pagar” é sinónimo de “tributar”, então “pagar” só pode ser outra maneira de dizer “subsidiar” – e os contratos de trabalho que Estado e funcionários públicos se têm dado ao incómodo de celebrar são uma formalidade inútil. Que reduzir a factura do SNS é, bem vistas as coisas, um imposto dirigido à indústria farmacêutica. Que diminuir a despesa pública e aumentar os impostos são, afinal, uma e a mesma coisa. Que o princípio enformador dos Estados de Direito “No Taxation Without Representation”
nunca passou de um soundbyte bem imaginado por Jefferson e Hamilton. E por aí adiante.
v É claro que o Governo poderia ter sido mais hábil, oferecendo aos funcionários públicos um leque de alternativas: menor remuneração, remuneração igual com empréstimo patriótico, ou resolução do contrato de trabalho. Com o excelente pretexto de que a economia, tal como está hoje e se perspectiva para o futuro, não comporta de todo uma folha de salários tão pesada quanto esta que herdámos do passado. Não ocorreu a ninguém, nem ao nosso Presidente, nem ao nosso Ministro das Finanças. Mas também não se lhes pode pedir tudo.
v Talvez se esperasse que o nosso Presidente pusesse o dedo na ferida que esta controversa medida abre: não assenta em prioridades, nem tão-pouco as estabelece. Todos os funcionários públicos levam por igual. Quando, na realidade: uns estão afectos a funções de soberania e há que colocá-los num regime de excepção que garanta a exclusividade e os preserve de conflitos de interesses, outros exercem funções que, no dia a dia, se sobrepõem à iniciativa privada. Mas isso seria exigir uma ideia de Estado e de organização estatal a mentes que têm mais com que se preocupar.
v Por falar em funções de soberania, a proposta governamental tem uma subtileza que, ou passou despercebida ao nosso Presidente, ou não lhe suscitou quaisquer engulhos: a suspensão dos ditos subsídios é só para o aparelho administrativo do Estado. Órgãos de Soberania, como Presidente da República, Assembleia da República e (fica-se na dúvida) Tribunais escapam à razia, ainda que sejam pagos também pelo produto dos nossos impostos. O BdP, com o pretexto de que se trata de um organismo independente dotado de receitas próprias, fica de fora também – embora organismos semelhantes venham a ser abrangidos.
v Digno de registo é, ainda, a miopia de que o nosso Presidente parece padecer. Refiro-me ao congelamento das rendas habitacionais anteriores a 1990 - assunto sobre o qual nunca se lhe ouviu uma palavra.
v Aí, também, sucessivas leis condicionam a vontade de cidadãos, os senhorios, impedindo-os de auferir rendimentos que o normal funcionamento do mercado de arrendamento torna legítimos. Analogia por analogia, é como se o Estado tributasse os senhorios, e só eles, de forma desigual para, com não menor iniquidade, subsidiar de imediato os inquilinos. De cada um, o seu imposto; a cada um, o seu subsídio – como se mais nenhuma variável entrasse na equação.
v E assim se faz política neste pobre país!
Outubro de 2011