OS GRANDES HOMENS - 1
Muito se fala de David Livingstone e das suas explorações em África. Sobretudo por causa do famoso encontro com o jornalista Stanley, e da inusitada frase deste ao encontrar o explorador/missionário/comerciante: “Dr. Livingstone, I presume?”
O grande sertanejo Silva Porto, nascido no Porto em 1817, e onde estudou as primeiras letras, chamou-se António Francisco Ferreira da Silva. De família pobre, seu pai tinha sido condecorado com distinção, como soldado do 18° regimento de infantaria, na chamada Campanha Peninsular, e sua mãe, criada em casa duma família. Aos 12 anos, terminada a instrução primária, seu pai pergunta-lhe que profissão queria seguir e ele respondeu logo: “o comércio, mas no Brasil”, porque “desde a infância sonhava com uma linda árvore cheia de patacas”; embarca então para o Rio de Janeiro, onde foi trabalhar na rua de S. José, armazém de louça de Gregório José Teixeira. “Um dia recebi uma bofetada de um serviçal, por ter vendido uma peça de louça e ter colocado o dinheiro em cima da mesa e não na gaveta. Sebastião, que assim se chamava o meu agressor, chegando próximo e por detraz, assenta-me a bofetada, e eu voltando-me, retribuo a ofensa com outra bofetada, mas criança, ferida no meu pundonor, ponho-me a chorar. N’este entrementes entrando meu amo, e informando-se do ocorrido, ao contrário de mandar castigar o preto, passa a repreender-me do meu descuido; eu porém não o deixei acabar. Pego no chapeo, que ponho na cabeça, e incontinente ponho os pés na rua. Que havia de ocorrer? Ir queixar-me a D. Pedro II e pedir-lhe emprego!”
Não chegou a tanto, porque no meio do caminho, depois de ter passado “a rua de S. José, Largo da Carioca e Rocio, Campo de Sant’Anna ao tempo, e mais ruas da cidade, até chegar na de São Christovam,” é abordado pelo dono de uma taberna que lhe deu abrigo até encontrar novo trabalho.
Espírito irrequieto, criança ainda, na sua estadia no Rio passou por nove empregos, mas desejoso de independência, em 1835 vai para a Bahia, e em 1836 adopta o sobrenome de Silva Porto, não só em homenagem à sua terra natal, mas para evitar confusões com outras pessoas que tinham o mesmo nome.
Em 1837, na sumaca (1) Novo São José, vai a caminho de Angola, onde não lhe corre bem a vida; regressa à Bahia, que encontra em plena revolução do Sabino, que paralisara todos os negócios, e no ano seguinte está de novo em Luanda, a trabalhar num pequeno estabelecimento pré falido!
Depois de dois empregos em tabernas pobres, e “na impossibilidade de continuar ao serviço de um comerciante pobre, e das ideias com que estava, influenciado com as entradas de todos os pontos do interior, e desgostoso por me fazerem sentar praça no batalhão de voluntários de Loanda”, reduziu as suas pequenas economias à compra de algumas “fazendas”(2), e ainda em 1839, “dei princípio à minha carreira de sertanejo”, que só terminaria, em tragédia, em 1890, quando se sentindo desprestigiado e desamparado pelas autoridades, pôs fim à vida, enrolado na bandeira portuguesa, fazendo explodir oito barris de pólvora.
Estátua de Silva Porto que esteve na cidade que começou sua existência com o seu nome, hoje se chama Kuito... e a estátua... sumiu!
Além disso parece que Silva Porto, quando usou barba, e foi pouco tempo, teria a barba curta!
Apesar de ter só a instrução primária, escreveu, sempre, muito, e os seus apontamentos são uma magnífica fonte de conhecimento do interior de Angola.
Um dos assuntos que também muito o “ofenderam” foi a maneira como Livingstone descreve a sua caminhada por África.
Primeiro, porque se vangloria de ter descoberto “tudo” por onde os portugueses andavam já há muito, muito, tempo. Mas Livingstone percorreu África sempre com bastante dinheiro e acompanhado dum engenheiro, que lhe permitiu definir com mais precisão a região que era conhecida por pouco mais do que “a tantos dias de viagem”, sem qualquer rigor geográfico.
Além disso, pela forma como trata Silva Porto, que se prontificou a ajudá-lo em tudo quanto necessitasse, inclusive lhe arranjando guias para poder ir a Luanda.
No seu trabalho, Livingstone, diz, que quando estava em Naliele (3) os negros eram tão negros como os de Barotse, às margens do Zambeze, mas “vive entre eles grande número de mulatos, distintos pela sua cor peculiar de amarelo doente!” Mais adiante: “os mulatos, os portugueses nativos, todos sabem ler e escrever e o chefe do bando, se realmente não é português, tem o cabelo europeu!” O “chefe do bando” era Silva Porto!
Também afirma nos seus escritos, o inglês, que se vangloria de ter estado em regiões onde jamais qualquer branco tinha aparecido, o que Silva Porto refuta categoricamente, e ainda que tenha sido o primeiro branco a atravessar o continente de costa a costa.
Em 1802, o também sertanejo tenente coronel Honorato da Costa, foi encarregado de promover a travessia de Angola a Moçambique. Os angolanos Pedro João Baptista e (seu irmão?) Amaro José – há ainda algumas notícias de um terceiro acompanhante, Anastácio Francisco – saem de Luanda em 1804, e após terem ficado detidos durante quatro anos em Cazembe (4), chegam finalmente a Tete em 1811. (Estava Livingstone ainda sem ter entrado sequer na barriga de sua mãe). Em 1815 os mesmos estavam de regresso a Angola. Mas... não eram brancos. Eram angolanos portugueses.
Em 1798 Francisco José Lacerda de Almeida, nascido em S. Paulo em 1750, licenciado em Matemáticas em Coimbra, de regresso ao Brasil, trabalhou na comissão da definição de limites Sul do Brasil. Oficial da Marinha, matemático e geógrafo, feito sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, foi por esta encarregado, em 1798, de fazer a ligação entre as duas costas, aproveitando para explorar geograficamente o continente.
Voltaremos a Silva Porto, mas por ora deixemos só o esclarecimento de que, muitos anos antes do Sr. Livingstone, já os portugueses, quer fossem brancos ou pretos, ou “mulatos com cabelo europeu” haviam detalhado conhecimento do interior de África.
(1) - Pequena embarcação americana de dois mastros
(2) - Fazendas eram chamadas todas as mercadorias que levavam para o sertão para negociar
(3) - Localidade na margem direita do Zambeze
(4) – Cazembe. Região Norte da hoje Zâmbia
Rio de Janeiro, 3 de Março de 2011
Francisco Gomes de Amorim