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A bem da Nação

A força deles veio do Mar

 

 

 

Allain Peyrefitte, Membro da Academia Francesa e professor do Collège de France, decidiu valer-se da História para estudar a divergência Norte-Sul que caracterizou o processo do desenvolvimento económico europeu. Destes seus estudos e conclusões dá-nos conta no seu livro La Societé de Confiance[1].

 

A forma como aborda a questão mostra que Peyrefitte é historiador mas não é historicista. Considera que a ética económica não nos foi dada, imposta, ou revelada, e não obedece a leis imutáveis. Comporta-se como um sistema inteligente que se transforma a si próprio.

Mesmo assim, o autor admite que nas remotas origens da formação do modelo económico europeu se encontra a Teologia. Não concorda porém com leituras - como a de Max Weber - que atribuem ao Protestantismo a progenitura da ética capitalista moderna, uma vez que a sequência cronológica dos factos as desmente.

 

Os mosteiros e as ordens religiosas medievais teriam sido os primeiros agentes económicos europeus de consequência e isto porque organizaram o espaço social para a produção e comércio. (Os nossos reis afonsinos que trouxeram as ordens religiosas para Portugal e aqui as protegeram, sabiam o que faziam). A Ordem dos Templários/Cristo adicionou o crédito financeiro ao quadro existente e assim ajudou a expansão do comércio. Diferente das restantes Ordens que visavam a satisfação das necessidades básicas, a dos Templários já tinha em vista a acumulação de riqueza. Começou-se pois a distinguir entre capital e trabalho. O sistema transferia regularmente proveitos da periferia para o centro (ao tempo, Roma). Isto tudo prova que a mentalidade da época configurava uma ética, senão já capitalista, com certeza pré-capitalista ("capitalismo antigo" como o autor lhe chama).

 

A inovação da contabilidade de partidas dobradas adoptada no Norte de Itália, no século XIV, abriu irreversivelmente o caminho à laicização. A prestação de contas fiável dispensou o recurso aos monges para guarda de activos líquidos. A actividade bancária passou a ser gerida por agentes privados laicos entre si associados. O instituto da dívida pública veio no encalço. As famílias de banqueiros privados tornam-se tão poderosas que tiveram que ser prontamente assimiladas pelo centro hegemónico. Banqueiros, eclesiásticos e senhores feudais tornaram-se patronos dos artistas. A Itália produziu a Renascença e o centro continuou a sujeitar - e, a partir de agora, também a deslumbrar - a periferia.

 

Para se apropriar de mais-valias, o centro hegemónico criou "produtos" (ontem, como hoje). Coletas, dízimos, heranças, confiscos, sucederam-se e, por fim, as indulgências provocaram a revolta dos agentes periféricos, encabeçada por Martim Lutero. As indulgências terão sido o mais tóxico de todos os "produtos" daquele tempo. Em resposta àquilo que considerou abusivo, o monge agostinho afixou as suas "Noventa-e-cinco Teses" à porta da igreja de  Wittenberg (1517). Estava criada a divergência religiosa. A divergência económica é contudo anterior à religiosa. Vejamos.

 

Ao longo de todo o período medieval, Veneza e Génova mantiveram as vias comerciais marítimas abertas. Três séculos antes da Reforma religiosa, a Liga Hanseática organizou o comércio no Báltico e Mar do Norte em moldes corporativos semelhantes aos de Veneza e de Génova. O comércio marítimo produziu ali um padrão de ética laica sui generis. Sendo a fonte de riqueza o mar - e não a terra, presa fácil das hierarquias continentais - os que navegavam em oceano aberto e comerciavam além-mar passaram a dispor em larga medida de liberdade de movimentos negada aos restantes.

 

Abre-se assim o caminho à valorização do indivíduo em detrimento do sistema, da iniciativa em prejuízo da disciplina, da concorrência em vez da conformidade.

 

A própria Liga Hanseática não resistiu ao surto de individualismo que o comércio marítimo gerou. Os armadores de Amesterdão, beneficiados pela geografia que lhes abria o Oceano, acabaram por centralizar todo o comércio de cereais e produtos florestais da região. À data da Convenção de Westefália, - 1643, início do Período Moderno - a cidade de Lübeck, promotora da Liga Hanseática, já fora relegada para a posição apagada de periferia sobrevivente. O fenómeno repetir-se-ia em várias épocas e várias latitudes. Os Holandeses aperceberam-se qua via do enriquecimento rápido passava pela apropriação do comércio externo alheio e tornaram-se mestres em tal arte que passaram a exercer nas mais diversas longitudes e altitudes. Dois séculos mais tarde, Amesterdão seria, por seu turno, marginalizado a favor de Londres. Mas Londres pouco acrescentou à ética que se formou na Holanda. Portanto é o fenómeno holandês que deve ser estudado para quem quiser conhecer a origem e natureza da divergência da ética económica a Norte e a Sul.

 

***

 

Os Frísios, povos germânicos da borda do Mar-Oceano, com um historial de lutas pela liberdade que vem desde o combate contra as legiões do César até à resistência aos tércios do Duque de Alba, forneceram o elemento humano que, a partir do século XV, chamou a si a função anti-hierárquica. Nasceu assim a figura do lobo do mar destemido e sem escrúpulos, inspirador do gentil-homem pirata (que a Rainha Isabel I da Inglaterra tanto admirava) e antepassado longínquo dos robber-barons que dominaram o século XIX americano. EM 1483, quando a peste dizimou os braços que trabalhavam a terra na Europa, os Frísios puseram os seus vizinhos Gelderesen a laborar na agricultura, não para matar a fome, uma vez que o alimento lhes vinha do mar, mas tão somente porque a escassez do produto agrícola por toda a Europa tornava este comércio altamente lucrativo. Aí aprenderam que lucro e abundância raras vezes correm parelhas. Perceberam também que a desgraça alheia pode reverter em benefício próprio. Mais tarde, aprenderiam também que a estupidez humana pode produzir o mesmo resultado. Viriam assim a desenvolver múltiplas formas de criar escassez no mundo e provocar descaminhos noutras economias, conhecimentos que o Sul não absorveu.  

 

A atitude dos Frísios holandeses difere da de outros primos germânicos continentais também protestantes. Os outros prezam acima de tudo a disciplina, a perfeição e o rigor; já os Frísios elegem como valor supremo a confiança em si e nos seus companheiros. O mar ensinou-lhes que a solidariedade entre humanos perante o perigo ainda é o melhor garante da salvação terrena. A confiança seria pois a chave do modelo económico e social holandês. Para esta gente, a Bíblia era clara e inteligível e dispensava interpretações e interpretes. A missa, diziam-na eles. A ordem pública mantinha-se por voluntariado, como ilustrado pela "Ronda da Noite" de Rembrandt. Na administração da cidade, a unanimidade era de regra. E assim chegaram ao "não-governo" (ninguém mandava) estabelecido em Amesterdão a partir de 1648. A cidade tornou-se rapidamente sede da liberdade burguesa livre pensadora. Indivíduos do Sul de propensão liberal - judeus ibéricos, banqueiros de Antuérpia, huguenotes franceses, etc. - vieram e ali fixaram residência. 

A religião teve obviamente o seu papel no processo. Não poderia deixar de o ter uma vez que era ao tempo a matriz de comunicação. O Calvinismo deu forma ao clima cultural e intelectual local, ao zeitgeist daquele tempo e daquela gente. Mas apenas forma, não substância. Peyrefitte diz-nos que os rudes comerciantes de Amesterdão pensavam em Calvino, mas só ao Domingo. Os povos que tomaram Calvino à letra - Gelderesen, Escoceses e Genebrinos - tarde ou nunca progrediram. Por isso, Peyrefitte entende que a força da gente de Amesterdão vinha do mar, não da fé.

 

Não surpreende pois que a ética capitalista do Norte tenha assumido o cunho sórdido que vários analistas vindouros denunciaram. A ganância escabrosa que se apoderou dos holandeses choca a sensibilidade humanista do resto da Europa, mas os racionalistas locais, com as suas vistas virada para o lucro, decidiram que "o vício do cidadão acaba por ser a virtude da sociedade".

 

***

 

Quem procurou subordinar a Economia à Teologia foi o Sul. O Concílio de Trento (1563) decidiu que, para enfrentar a revolta periférica e restaurar a autoridade da Igreja Romana, haveria que lançar mão da centralização absoluta com exclusão dos recalcitrantes[2].

Anátema passou a ser a palavra-chave; condenar, excomungar e excluir, as práticas escolhidas. E o crente assimilou os hábitos do Inquisidor. Enquanto no Norte se instalava a confiança, no Sul, instalava-se a desconfiança. No Norte, estimulava-se a iniciativa privada, criavam-se instrumentos de cooperação, festejava-se a racionalidade e abriam-se as portas aos refugiados da perseguição tridentina, enquanto que, no Sul, perseguiam-se os empreendedores, confiscavam-se os capitais, expulsavam-se as elites e combatia-se a inovação. Ao longo dos 3 séculos seguintes, o Sul estagnou e o Norte prosperou. Pior, porém, a contribuição perene do Protestantismo foi o sentimento que se instalou no Norte de desconfiança em relação ao Sul, ali tido por aproveitador do trabalho alheio. O sentimento perdura e ainda hoje é a principal causa de mal-estar na União Europeia.

 

***

 

Agora que estamos todos metidos no mesmo saco, a única solução parece ser estudarmo-nos uns aos outros, racionalizar as diferenças, superar os desentendimentos; eliminar as desconfianças. Nem tanto ao mar, nem
tanto à terra. E assim poderemos finalmente aproveitar o que cada um tem de bom - e que não é pouco. Esperemos que isso aconteça.

 

Estoril, 8 de Julho de 2011

 

  Luís Soares de Oliveira



[1] Alain Peyrefitte, La Societé de Confiance, Odile Jacob, Nouvelle  Édition, Paris, 2005, 720 páginas.

 

[2] O que Peyrefitte nos diz, hoje, sobre as causa do atraso do Sul da Europa é precisamente o mesmo que disse Antero de Quental na sua contribuição para o ciclo de Conferências do Casino, (Lisboa, 1871), sob o título "Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos". Antero também atribuiu ao Concílio tridentino as causas do nosso mal.

 

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