Caturrices 24
Ah, Malvados! Então isso faz-se? - II
v Chegados a este ponto, será que consegui convencê-lo, Leitor, de que:
- Os investidores institucionais são como os génios da lâmpada – existem para satisfazer, tant bien que mal, os desejos dos seus clientes quanto a segurança (a preservação do capital investido) e retorno (o rendimento líquido obtido)?
- Os clientes dos investidores institucionais somos nós - ou é gente como nós?
- Notações de risco (ratings) credíveis (mas não necessariamente as actuais Agências de Rating) são essenciais à transparência e ao funcionamento responsável dos mercados financeiros?
- Especulação não é manipulação – os especuladores arriscam na esperança de um ganho legítimo, cientes de que a realidade lhes pode trocar as voltas e infligir-lhes perdas?
- A manipulação, essa, nunca corre riscos - excepto o de ir para a cadeia, nos regimes jurídicos que a criminalizam?
- Em condições normais, o diminuto (na proporção) stock de Dívida Soberana portuguesa torna a especulação nestes títulos muito mais arriscada, por serem títulos com pouca liquidez no mercado secundário?
v No mundo da Dívida Soberana (e das Obrigações, em geral), as coisas passam-se sem sobressaltos – se tudo correr bem, naturalmente. Cada emissão, uma vez colocada (mercado primário), percorre sucessivamente três etapas (mercado secundário):
(1) negociada activamente, nos primeiros meses (na gíria, “on-the-run”);
(2) negociada ocasionalmente, no que faltar até ao final do primeiro ano, ano e meio do respectivo prazo (“off-the-run”);
(3) negociada muito raramente até final (“off-off-the-run”).
v E quem investe no mercado primário, nem sempre o faz para manter em carteira até ao vencimento a totalidade dos títulos que subscreve. Aposta, sim, na possibilidade de a cotação subir acima do preço de emissão e proporcionar umas mais-valias a curto prazo. Especula - mas, a priori, nada garante que as contas não venham a sair-lhe furadas.
v Uma vez estabilizada a cotação no mercado secundário (as etapas off-the-run e off-off-the-run), os títulos de uma dada emissão de Dívida Soberana só são transaccionados:
(1) ou por razões específicas dos investidores institucionais (condicionalismos de tesouraria, por exemplo);
(2) ou em resposta às contingências da política monetária (alteração das taxas directoras ou das condições de acesso à liquidez do Banco Central).
v Mas é o que se passar com o Estado emitente que faz com que a Dívida Soberana volte à etapa on-the-run:
(1) umas vezes por boas razões, quando, aos olhos do mercado, a sua situação financeira melhora (o que não é tão infrequente assim);
(2) as mais das vezes por más razões, ao generalizarem-se as dúvidas sobre se ele vai ser, ou não, capaz de pagar.
v Três notas, antes de prosseguir:
- Os Regulamentos dos Fundos são, regra geral, taxativos quanto ao risco de crédito a que podem estar expostos (“nada abaixo do rating tal”). E os títulos de uma emissão cujo rating deixe de ser compatível com o Regulamento têm de ser imediatamente vendidos, com as consequentes menos valias (para Bancos e Seguradoras, a questão coloca-se mais em termos do rombo que as menos valias provoquem nos Capitais Próprios).
- No mercado secundário, os títulos de Dívida Soberana são transaccionados pela respectiva cotação – e não, como se ouve e lê, pela taxa de juro. Assim, quando se diz que os juros no mercado secundário estão a subir, isso não significa que o Estado Português esteja a pagar juros mais elevados nas emissões aí transaccionadas. Significa, apenas, que a cotação está abaixo do preço de emissão. E como a Dívida Soberana portuguesa é emitida com taxas de juro fixas: (1) quem compra exige uma taxa de retorno superior àquela com que a emissão passou no mercado primário para correr o risco de as dificuldades financeiras do Estado Português se agravarem (ou, no limite, de este se declarar incapaz de pagar); (2) quem vende aceita suportar uma menos valia para se ver livre desse risco (na gíria, consolida a perda).
- Quando se diz que a taxa de juro da Dívida Soberana portuguesa atingiu, no mercado secundário, 7%, isso significa que esses títulos foram negociados com uma menos valia de 12% (aprox.) relativamente ao respectivo preço de emissão. Menos valia que salta para os 15% (aprox.) se essa pseudo taxa de juro for de 8%.
v Para o comum dos mortais, investir em Dívida Soberana é sinónimo de manter os títulos em carteira, receber os juros e recuperar o seu capital a tempo e horas - gentileza do Orçamento do Estado devedor, ponto final. Sob este ângulo, nenhum investidor assumiria um comportamento tipicamente especulativo.
v Contudo, a Dívida Pública (em boa verdade, quaisquer títulos, como as acções cotadas) pode também proporcionar ao investidor outro tipo de ganhos, obtidos agora no mercado secundário, à custa, não do Estado devedor, mas de outros investidores. As mais valias na etapa on-the run, acima referidas, são disso um bom exemplo.
v Outro exemplo é quando a situação financeira do Estado devedor dá sinais de se degradar, mas não ao ponto de ser já um default evidente. Uns investidores pensarão que se degradará ainda mais. Parecerá a outros que os problemas são, apenas, passageiros, tudo se recompondo em breve. Outros ainda hesitarão entre estes dois cenários.
v Para quem crê que a situação financeira do Estado devedor só pode piorar, e que a cotação da sua Dívida Soberana não parará de cair, faz sentido efectuar vendas “a descoberto” (short selling):
(1) pedir emprestado um lote [q] desses títulos a quem não pense assim, ou esteja obrigado a mantê-los em carteira (por vezes, acontece);
(2) vender o lote ao preço do mercado à vista [p0];
(3) esperar que a cotação caia ainda mais; (4) recomprar um lote idêntico (são títulos fungíveis) a um preço mais baixo [p1<p0], restituir os títulos que pedira emprestado e encaixar o ganho [=q.(p0-p1)].
v É claro que se a cotação desses títulos nunca descer abaixo do preço a que os títulos sejam inicialmente vendidos [p0], o prejuízo numa operação de short selling pode ser substancial. A especulação é isto mesmo: corre o risco de perder (e paga, à cabeça, uma comissão a quem emprestar os títulos) na mira de obter um ganho jeitoso.
v O apetite por estas operações de venda “a descoberto” é tanto maior:
(1) quanto mais acomodativa for a política monetária (taxas directores muito baixas, liquidez abundante);
(2) quanto maior for a diferença entre as taxas directoras e as rentabilidades que alguns investidores institucionais (Seguradoras “Vida” e Fundos de Pensões) contratam com os seus clientes;
(3) quanto mais problemática for a situação financeira do Estado devedor.
v Malvado especulador é, então, aquele que toma a iniciativa de vender “a descoberto”? Nem por sombras. Quem compra o lote não é menos especulador, pois aposta na subida da cotação a breve trecho – e não é malvado, antes evita que a cotação, pelo menos nesse momento, caia ainda mais. E quem vende mais tarde para permitir o fecho da operação será, quando muito, um especulador desiludido que renuncia ao valor temporal da emissão.
v Visto isto, diga-me Leitor: se eu lhe devesse uma quantia que excede em muito o meu rendimento disponível; se para receber de mim o que eu já devo tivesse de continuar a emprestar-me; se mesmo para eu pagar os juros só com mais dinheiro emprestado; se, para mais, soubesse que sem mais dinheiro ainda eu não sobreviveria – continuaria a tratar-me como se eu fosse um devedor de confiança?
v É que o nosso maior problema não reside na Dívida Soberana acumulada (que é enorme). Reside, sim, em não sabermos ainda onde arranjar o dinheiro que é necessário para pagar os juros que entretanto se vencerem e os deficits orçamentais que estão previstos.
v Afinal, os malvados somos nós - que deveríamos ter tido mais juízo (leia-se: sido melhor governados) todos estes anos.
(FIM)
A. Palhinha Machado