COMBUSTÍVEIS E COMBURENTES – OU AS CAUSAS DA CRISE
O Banco de Portugal (BdP) tem vindo a apontar o dedo acusador ao descontrolo das contas públicas. "Nada mais a propósito", dizem todos. Peço licença para discordar.
Tal como hoje, também no tempo do Escudo as derrapagens da despesa pública atiravam para o vermelho o saldo da BTC e traçavam o nosso destino: gordos deficits orçamentais, financiados através da emissão de moeda; um povo pobre com gostos ricos, iludido por mais dinheiro em circulação, a comprar no exterior o que não sabia, ou não queria, produzir por cá; a BTC em crescente desequilíbrio; as aflições cambiais do BdP; e, por fim, a inevitável desvalorização do Escudo - sem dúvida, a maneira mais rápida e democrática de repartir por todos o custo desses desequilíbrios. Desequilíbrios que os Governos, aliás, se afadigariam para criar de novo, mal surgisse uma oportunidade.
Com o € a atitude dos Governos pode não ter mudado por aí além, mas o papel que cabia quase em exclusivo ao BdP no financiamento do desequilíbrio externo, esse, terminou de vez. São agora os Bancos que têm de penar para conseguirem cobrir o deficit da BTC, auxiliados ocasionalmente por mais Dívida Externa - uma vez que pouquíssimos de nós, entidades não financeiras (ENF), encontram no estrangeiro quem queira fiar-lhes dinheiro, ou deles ser sócio. Os Bancos, como assim? Porque todos nós sacamos sobre os nossos Bancos para pagar o que vamos comprando, e o que compramos ao exterior é bem mais do que aquilo que de lá recebemos (pelo que exportámos ou como remessas, transferências, etc.) e que, presumo, depositámos. Mas se a realidade fosse assim tão simples, a um deficit da BTC corresponderia uma igual redução do saldo nas nossas contas bancárias (isto é, da massa monetária) – e com menos dinheiro a girar, tudo voltaria ao seu lugar, mais cedo ou mais tarde.
Só que a realidade é complicada (ou facilitada, consoante o ponto de vista) pela presença do crédito bancário - o qual, em boa verdade, não é crédito no sentido vulgar do termo, antes criação de moeda (moeda escritural) que os Bancos entregam em contrapartida da dívida que as ENF subscrevam. É, justamente, a expansão continuada do crédito bancário (e, por aí, da massa monetária) que vai fazer com que as ENF continuem a poder gastar cá dentro e lá fora, apesar de, no cômputo geral, sacarem mais do que aquilo que depositam – pois aí estão os Bancos a emprestar, cobrindo a diferença. Ora, se um Banco de cá receber instruções para pagar ao estrangeiro por débito de uma conta suficientemente provisionada, não tem mais que cumprir. Muito provavelmente, atendendo à ténue presença dos nossos Bancos além fronteiras, quem lá fora receber o pagamento correrá a depositá-lo num outro Banco – e este Banco estrangeiro, rigoroso, virá exigir ao Banco sacado que remeta os correspondentes fundos. Vê-se, assim, que os Bancos, entre eles, têm problemas de liquidez em tudo semelhantes aos de qualquer ENF. E se não têm dinheiro para o que pretendem fazer, ou há outros Bancos que lho emprestam – ou fazem menos. Em resumo, os deficits da BTC, hoje em dia, ressurgem nos Balanços dos Bancos sob a forma de passivo a curto prazo devido a Bancos não-residentes - também designado por endividamento monetário no exterior.
A carambola está, pois, desenhada: "crédito bancário+deficit orçamental (os efeitos de ambos adicionam-se nos bolsos das ENF)->deficit da BTC->maior endividamento monetário no exterior->mais crédito bancário…". Sem a expansão brutal do crédito bancário, e sem o endividamento monetário que a tornou possível, os deficits orçamentais não teriam causado uma degradação tão ampla e tão rápida no saldo da BTC - e a consequente quebra no volume de dinheiro em circulação teria impedido que os desequilíbrios fossem tão longe. Na realidade, os Bancos portugueses (e as Filiais portuguesas de Bancos estrangeiros), a partir de 1999 (quando era certo que Portugal entraria na Zona Euro), aproveitaram a eliminação do risco cambial, a queda nas taxas de juro, um quadro prudencial demasiado permissivo para o endividamento entre Bancos e a sobreliquidez de várias economias europeias para travarem, cá dentro, uma luta feroz por quota de mercado - e endividaram-se para lá do razoável junto de congéneres estrangeiros. É a facilidade do endividamento monetário que tem instigado, dia após dia, a competição entre os Bancos por novos devedores - estes deliciados por verem como, de um momento para o outro, podiam, também eles, endividar-se tanto e a tão baixo custo. No calor da compita, ninguém cuidou de ver se o preço do crédito bancário é suficiente para compensar o risco a que os Bancos se expõem. Não é.
A esta luz, os deficits orçamentais são apenas parte - e uma parte menor - da estória. Estória que podia ser diferente se o BdP desviasse por um instante os olhos do zodíaco e agisse: tinha argumentos, tinha instrumentos, tinha a obrigação de saber para onde se caminhava. Tinha argumentos, porque era evidente que os Bancos, no afã da competição, não repercutiam no preço do crédito as perdas a que se expunham - quando a actividade financeira se orienta, de há muito, por uma regra: "as perdas esperadas incluem-se no preço; pelas perdas não esperadas responde o capital". Tinha instrumentos: a sujeição do endividamento monetário a reservas de caixa, ou a fixação de um rácio máximo para este tipo de passivos, por exemplo. E se considerasse, sensatamente, que deveria, primeiro, lançar mão de meios menos drásticos – aí estava o telefone do Senhor Governador para obrar maravilhas.
Concluindo. Se o descontrolo orçamental sempre foi o combustível dos nossos desequilíbrios “macro”, agora, têm sido as estratégias comerciais agressivas da Banca (toleradas pelo BdP), qual comburente, a alimentarem-nos, a ampliarem-nos e a prolongarem-nos - tal como acontecia quando, nos tempos do Escudo, os deficits orçamentais eram financiados por mais moeda. Só que, no quadro actual, não há uma barreira cambial que amorteça a crise.
A. Palhinha Machado
[Publicado no jornal “Público” em Janeiro de 2005]