CATURRICES 22
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SAIR DA CRISE A NAVEGAR E A VOAR - XIX
Não restam dúvidas de que o Brasil é, e será, o Estado ribeirinho dominante no Atlântico Sul – onde projecta uma presença assaz discreta, diga-se de passagem. Mas isso não chega para fazer de “el charco” (é assim que os argentinos se referem carinhosamente ao oceano) um pólo geoestratégico. Terá de haver parceiros à altura na margem oposta.
Angola é o primeiro candidato que vem à ideia, apesar das suas actuais debilidades. Mas, para tal, são imprescindíveis:
(1) portos marítimos eficientes ligados ao interior do continente (para Norte, para Leste e para Sul) por ferrovias capazes;
(2) e um hub intercontinental que satisfaça os padrões internacionais da aviação comercial.
Uma possibilidade que desaparecerá se esse hub vier a ser localizado na Zâmbia (Lusaka?). Se isso acontecer, Angola ficará, no melhor dos cenários, como um território:
- Por onde transitam mercadorias;
- Que gera, apenas, procuras de transporte aéreo que aí tenham origem ou destino (designadas por “procuras locais” de transporte aéreo);
- Remetido para a periferia distante dos pólos geoestratégicos, em cujos mercados a sua economia (dos minérios à produção agro-pecuária, a indústria ainda vem longe) terá de competir onerada pela distância;
- Totalmente dependente do que acontecer nos restantes países da SADC (Southern African Development Community).
A oferta de transporte aéreo (passageiros e carga) à roda do Globo está hoje perfeitamente estruturada em torno de 3 Grupos (indico, para cada um deles, as companhias aéreas de referência no Atlântico Sul, apenas): Sky Team (Air France/KLM), One World (British Airways, IBERIA, LanCHILE), Star Alliance (TAP e, em menor escala, Lufthansa).
O que não está ainda completada é a rede mundial de aeroportos, que será formada por hubs intercontinentais, hubs regionais e aeroportos locais (escrevi sobre isto no semanário “O Independente”, entre Janeiro e Março de 2006, e nas Curtinhas 36 a 40 e 42 a 48, entre Abril e Setembro de 2007).
Para atingir a máxima rentabilidade numa rota intercontinental (ou “de longo curso”) é determinante que o tempo de viagem, em condições normais de voo, não exceda 9 ½ horas. Só assim:
(1) uma aeronave poderá fazer diariamente uma rotação completa (ida e volta no mesmo dia), já contando com pequenos imprevistos;
(2) será possível minimizar, simultaneamente, o custo imputado da aeronave e o custo da permanência em aeroportos.
9 ½ horas é o tempo médio de viagem entre S. Paulo (ou Rio de Janeiro) e Lisboa (Portela ou Alcochete). Para Madrid (Barajas) há que adicionar 50-55 minutos - e para Paris (Charles DeGaulle ou Orly) ou Londres (Heathrow ou Gatwick) mais 2 ¼ horas (aprox.).
Uma vez que S. Paulo é (porque reúne todas as condições para ser) o hub intercontinental de referência na América do Sul, a rota transoceânica S.Paulo/Lisboa é a que permite o menor custo por lugar oferecido – um custo significativamente inferior aos das rotas que têm no outro extremo Madrid, Paris ou Londres. E a TAP (sem concorrência nessa rota, após o desaparecimento da VARIG) tem tirado bom proveito disso (com preços exorbitantes, forçoso é reconhecer).
Por outra parte, é de prever que a tecnologia na aviação comercial conheça, no futuro próximo, substanciais avanços nos vectores “fiabilidade”, “capacidade/payload” e “consumo/poluição”, mas não quanto a “velocidade de cruzeiro” – pelo que o raciocínio acabado de expor deve permanecer válido, mesmo com a nova geração de aeronaves.
A rota Lisboa/Luanda (mas poderia se Lisboa/Saurimo ou Lisboa/Huambo) fica confortavelmente aquém das 9 ½ horas (e a TAP faz uma rotação completa/aeronave). Tal como não excedem essa duração limite as rotas Madrid/Lusaka (One World) ou Paris/Lusaka (Sky Team).
1ª conclusão (óbvia): um hub intercontinental da África Austral localizado em território angolano só terá vantagens competitivas se existir um hub intercontinental em Lisboa.
2ª conclusão (não tão óbvia): o pólo geoestratégico do Atlântico Sul só surgirá se o hub intercontinental da África Austral ficar localizado em território angolano.
3ª conclusão (ainda menos óbvia, mas perfeitamente demonstrável): o pólo do Atlântico Sul conferirá à economia portuguesa uma posição de charneira incontornável (entre a Europa a América do Sul e a África Ocidental), tanto para passageiros como para mercadorias (uma espécie de EUA em ponto pequenino, irrepetível noutra qualquer parte do mundo).
4ª conclusão (igualmente demonstrável): se o pólo do Atlântico Sul não conseguir ganhar expressão, a economia de Angola perde (remetida como fica a uma posição periférica na SADC) e será mais difícil rentabilizar plenamente o hub intercontinental de Lisboa.
5ª conclusão (não menos demonstrável): a maior vantagem que o pólo do Atlântico Sul terá para oferecer ao Brasil consiste no preço das passagens aéreas de e para a Europa Ocidental - pelo que não é de esperar que esta perspectiva lhe desperte um entusiasmo por aí além.
6ª conclusão (óbvia): sem o pólo do Atlântico Sul o primeiro perdedor, entre nós, mas longe de ser o único, será a TAP, que terá mais dificuldade para se afirmar como membro proeminente do exclusivo clube dos carriers intercontinentais.
7ª conclusão (óbvia): os estudos que fundamentam o NAL, na medida em que colocam a tónica nas procuras locais de transporte aéreo e ignoram a função hub intercontinental, são completamente inúteis para o que interessa decidir.
8ª conclusão (também óbvia): Jo’burg não deverá manter a posição de hub intercontinental para a África Austral por muitos mais anos.
9ª conclusão (de palpite): Brasil e Angola são dois países unidos pela língua, com interesses comuns em quase todas as actividades económicas (nomeadamente na agricultura e pecuária), mas que o petróleo tende a separar – por isso, o pólo do Atlântico Sul necessita de ser triangular, cabendo ao vértice português, desde logo, assegurar que a ligação (por mar e pelo ar) dessa área à Europa Ocidental seja optimizada.
Resta a pergunta fatal: neste contexto multipolar, o NAL será, ou não, mais um “elefante branco”?
Neste momento, não tenho condições de responder com segurança. Mas, caro Leitor, se quiser ter a resposta, não encomende estudos a consultores de grande prestígio internacional - que só perde tempo e dinheiro:
- Meta-se no avião (de preferência acompanhado por alguém qualificado da TAP);
- Vá à sede da Lufthansa (Star Alliance) e pergunte se lhes interessa dispor de um hub intercontinental em Portugal (isto é, que volume de tráfego preveriam passar por aqui) e em que condições;
- Se a resposta for positiva (como aposto que será), no regresso passe por Paris e faça as mesmas perguntas à Sky Team;
- Baseado nas previsões de tráfego assim recolhidas, estimar as receitas potenciais do NAL está ao alcance de uma simples folha de cálculo – e o custo máximo admissível para o investimento ficará logo claramente determinado;
- Assegurar a cobertura financeira do investimento (sempre que aquele custo máximo seja respeitado), tendo presente as utilizações previstas por Star Alliance e Sky Team, é coisa para uma meia dúzia de telefonemas, não mais – sem que o Estado gaste 1 ¢.
Complicado? Só se o Governo quiser:
- Sobrecarregar o investimento (que pouco terá a ver com as procuras locais de transporte aéreo) com uma ponte exuberante num local pouco apropriado (quando um túnel, um pouco mais a montante do rio, é a solução apropriada).
- E, de caminho, imitar Salazar quando ele decidiu, de dedo em riste: “Quero obra que se veja. Ponte!”. E é assim que hoje nos orgulhamos da Ponte sobre o Tejo.
FIM