CATURRICES 14
DA MÁQUINA PARA O HOSPÍCIO – XI
Vem? Não vem? Mas, entretanto, que tal mais um tirinho no pé? O que deveria ser um instrumento, o derradeiro, o de último recurso, da política económica, guardado a bom recato para o que desse e viesse, foi convertido, aos olhos de todos, num caso de lesa-pátria - se não mesmo de polícia.
Quantos trunfos mais vamos nós desperdiçar por vaidade e estupidez - depois de termos malbaratado a adesão ao maior espaço económico mundial e de, com igual engenho, termos conseguido transformar uma oportunidade de ouro numa maldição (refiro-me à participação na Zona Euro, como é bem de ver)?
Sim, porque uma “Carta FMI” nada mais é que um programa que visa repor os equilíbrios “macro” numa economia em acentuada crise. Desagradável, sem dúvida. Mas infinitamente mais suave do que a alternativa que se abre perante um país em ruptura de pagamentos e que depende do exterior para se alimentar, iluminar, aquecer, movimentar. E com a apreciável vantagem de estar disponível a qualquer hora: um trunfo, pois.
O que seria sensato era, não envolver este trunfo num voodoo politiqueiro, não fazer dele um drama camiliano, mas procurar descobrir a melhor maneira de lhe dar bom uso.
E o que sabemos nós disto? Alguma coisa deve ter ficado na nossa memória, porque o FMI andou por cá faz agora uns 30 anos – e por duas vezes. Além de ser abundante a literatura sobre os seus sucessos e insucessos por esse mundo fora.
Com maior ou menor cor local, as “Cartas FMI” rezam sempre o mesmo:
- Desvalorização cambial - para retirar a BTC “do vermelho”;
- Aumento da carga fiscal e cortes na Despesa Pública - para, de uma assentada, reduzir o rendimento disponível das Famílias (logo, o consumo e, por aí, as importações de bens e serviços), reequilibrar o Orçamento e interromper a escalada da Dívida Pública;
- Aumento dos preços “sociais” (utilidades, transportes, etc.) - não tanto para reduzir ainda mais o rendimento disponível das Famílias, mas como imposto disfarçado (ainda que se diga que é só para eliminar subsídios e aliviar o gasto público);
- Limites à expansão da liquidez em circulação - para acelerar o reequilíbrio da BTC;
- Se o caso é mesmo, mas mesmo, grave - restrições administrativas à livre movimentação de mercadorias e de capitais (aquelas deixam de poder entrar e estes deixam de poder sair);
- Uma pitada de inflação (em público, jura-se que não) - para diluir o peso da Dívida Pública no PIB;
- Umas medidas ditas “estruturantes” - dirigidas, quase sempre, ao mercado do trabalho.
Vejamo-las por alto. A desvalorização cambial dá jeito, mesmo muito jeito. É uma medida “democrática” (num primeiro momento, atinge todos por igual, ainda que, mais tarde, vá penalizar mais uns que outros); que, num ápice, coloca a estrutura de custos internos num patamar de maior competitividade internacional; e que pode atrair investimento directo estrangeiro (isto, se os “custos de contexto” não forem exorbitantes).
Mas, só por ela, é incapaz de fazer subir a economia na “escala de valor” (dito de outro modo, é a competitividade possível, pelo esmagamento dos custos e não pela eficiência, muito menos pela excelência). Sem grande mobilidade profissional e geográfica da população activa, é uma medida que não leva longe. E se os “custos de contexto” permanecerem relativamente altos, os capitais externos manter-se-ão ao largo.
Quanto às medidas orçamentais, o FMI não é esquisito: quer superavits, ponto final. Cabe ao Governo decidir que impostos agravar e que gastos suprimir.
Os preços “sociais” actualizam-se por decreto, com a justificação do equilíbrio orçamental. Mas, mais tarde ou mais cedo, isso teria de acontecer, pense “a rua” o que pensar.
Com ou sem FMI, limitar a liquidez em circulação implica pôr fim à monetização da Dívida Pública (isto é, os financiamentos directos do Banco Central ao Governo) e travar a expansão dos Balanços da Banca. Mas, curiosamente, é raro o FMI preocupar-se com as consequências do afluxo de capitais externos para a estabilidade dos preços internos (talvez porque isso nunca acontece enquanto o FMI está em cena).
A contingentação administrativa das importações e a proibição da exportação de capitais são medidas reconhecidamente excepcionais e, por isso, temporárias – até porque o FMI é defensor extreme da globalização.
Como facilmente se percebe, esperar que a inflação reduza o peso real do serviço da Dívida Pública só faz sentido se esta estiver denominada na moeda nacional (entretanto desvalorizada) e na posse de residentes – e, mesmo assim, tal demora a produzir efeitos visíveis. E se houver Dívida Soberana dessa na posse de não residentes, será a desvalorização, e não a inflação, a penalizá-los de um golpe.
As alterações estruturais, nomeadamente no mercado laboral, são sempre apresentadas como condição sine qua non para atrair o investimento externo e, assim, dinamizar o Sector dos Bens Transaccionáveis (leia-se, as exportações).
Sob este ponto de vista, os remédios que o FMI avia parecem pensados para economias:
(1) que disponham de moeda própria, ainda que gerida em currency board (isto é, com a taxa de câmbio fixada relativamente a um cabaz de moedas);
(2) cuja crise radique fundamentalmente no desequilíbrio das contas públicas e, por arrasto, na ruptura dos pagamentos ao exterior;
(3) em que os subsídios ditos “sociais” sejam uma parcela importante da Despesa Pública;
(4) em que os Bancos estejam razoavelmente capitalizados e, acima de tudo, apresentem um endividamento externo diminuto;
(5) onde o Sector de Bens Transaccionáveis tenha já alguma expressão - ou possa ser montado em pouco tempo (por ser trabalho-intensivo);
(6) em que a população não seja avessa a mudar de profissão ou de local de residência;
(7) onde exista uma economia informal (e auto-consumo) suficientemente extensa para absorver parte dos choques no rendimento real.
Quando os desequilíbrios “macro” têm origem no sistema bancário (como na crise asiática de 1996-97, com os Bancos da área a deverem o equivalente a 4 vezes os seus Capitais Próprios a Bancos estrangeiros) ou no excessivo endividamento externo (como na Argentina), as “Cartas FMI” chegam com dificuldade a Garcia – se é que não ficam mesmo pelo caminho, onde a renegociação da dívida externa (com perdão parcial de capital e juros) terá de ir recuperá-las.
Compreende-se, pois, a perplexidade do FMI na Grécia e na Irlanda. E por cá?
(cont.)
Janeiro de 2011