A ARTE DE SE TORNAR INDISPENSÁVEL
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Bismarck nunca aceitou que a política fosse uma Ciência; tratou-a sempre como Arte. O suprassumo desta Arte - a sua - consistia na capacidade de se tornar indispensável. Colocado perante um conflito, a última coisa que lhe poderia passar pela cabeça seria a ideia de o resolver. Em vez disso, procurava criar empatia em qualquer das partes e não perdia uma ocasião de inspirar e dilatar respeito a todos os empenhados na contenda, qualquer que fosse a respetiva posição. Apercebeu-se da vantagem de tal atitude logo que, ainda jovem, entrou na política. No velho Reino da Prússia, desenhava-se então (segundo quartel do século XIX) um braço de ferro entre a Coroa e o recém-constituído Parlamento para decidir a quem cabia a tutela do Exército. (Naquele Reino, dado o estilo da cultura local, o Exército era e foi sempre importante - senão mesmo a principal - fonte do poder).
Bismarck, latifundiário junker - a classe que fornecia a oficialidade do Exército - especializou-se no Parlamento em matéria de fiscalização da despesa militar o que lhe conferiu autoridade no processo de obtenção de autorização para adiantamentos de verbas ao Exército. Como esta carência é perpétua, Bismarck tornou-se indispensável à Coroa, aos generais e ao próprio Parlamento. A partir de então, Bismarck passou a montar sistematicamente situações que mostrassem a sua indispensabilidade. Para tanto servia-se de tudo, até dos sentimentos públicos. Exaltava-os, atiçava-os ou adormecia-os conforme as suas conveniências do momento. A cultura militar era útil na medida em que inspirava aos alemães o nacionalismo indispensável à unificação económica e política do antiquíssimo Sacro Império Romano do Povo Germânico (vulgo, Alemanha).
Mais tarde, já como chanceler (primeiro ministro) e dominando o Exército, convinha ao seu poder tornar o exército indispensável. Decidiu que a melhor maneira de tornar o Exército indispensável era a guerra. Realizou também que se pode fazer a guerra sem incomodar o Parlamento; basta autofinanciá-la mediante saque e imposição de reparações ao inimigo vencido. Aos soldados combatentes, compensou-os de duas maneiras: deu-lhes armas que permitiam liquidar os inimigos antes que estes pudessem usar as suas (glória a baixo risco) e criou a pensão perpétua para antigos combatentes. Os industriais não se queixaram pois iam enriquecendo com as encomendas de armamentos. Ludibriou a Áustria prometendo-lhe um ducado dinamarquês.
O Imperador austríaco - então dominante no espaço alemão e sempre sequioso de acesso ao Mar do Norte - aceitou. Sem apoio do Imperador austríaco, os outros reizinhos, incluindo o da Baviera, e os Grandes Eleitores desistiram de se opor ao chanceler prussiano. Mesmo assim, havia sempre a hipótese de a França se intrometer, como era do seu uso. Sucederam-se as campanhas militares que terminariam com a derrota da França, a unificação da Alemanha sob égide prussiana - leia-se Bismarck - e a expulsão da Áustria do antigo espaço alemão. Os ducados dinamarqueses tornaram-se prussianos; a Áustria manteve-se contudo amiga pois os Habsburgos ficaram, a partir de então, dependentes do apoio militar de Berlim. E assim acabou a espiritualidade, o romantismo, a fantasia, a humanidade e outros notáveis impulsos artísticos que se materializaram nas catedrais góticas do Reno, nas pinturas de Grünewald e Dürer, na poesia de Schiller, Goethe, e Heine, na música de Beethoven, Schubert e multidão de génios de tempos anteriores. Luís Frederico da Baviera, construtor de delirantes castelos de fadas, afogou-se no Lago dos Cisnes. Sonhar era proibido; quedou-se apenas o ritmo irresistível e o perfeccionismo formal sintetizados na arte de J.S. Bach. Para o bem ou para o mal, a Alemanha rendeu-se à prosaica cultura prussiana nascida nas planuras arenosa, quase estéreis que se estendem, a Norte, até à beira do Báltico. Isto aconteceu porque Bismarck, quando vivo, soube tornar-se indispensável e, no processo, acabou por tornar o Exército indispensável à Prússia e esta indispensável à Alemanha.
Até quando?
Voltaremos ao assunto.
Estoril 17 de Janeiro de 2011
Luís Soares de Oliveira
(*) http://www2.needham.k12.ma.us/nhs/cur/Baker_00/2001_p2/baker_lg_bp_pd.2/otto%20von.gif