TSUNAMI
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Depois de mais dois meses de clandestinidade, o Governo actuou. Tarde, mas actuou.
Ontem veio o tsunami que todos temíamos. Os cortes desta vez parecem ser a valer. Depois de mais dois meses de clandestinidade, o Governo actuou. Tarde, mas actuou.
Vale a pena fazer o filme da crise financeira e orçamental. No início de 2008 o Governo entrou em campanha eleitoral: despediu Correia de Campos, desceu o IVA para 20%, pôs na gaveta umas quantas reformas. Com a crise internacional a agudizar-se em finais de 2008 e com as eleições à porta, foi o descontrolo absoluto das contas públicas. Mas ganha as eleições, embora com maioria relativa. Chegamos a Janeiro passado com um défice incompreensível de 9,3% do Produto para 2009. Porque poderíamos vir a ter eleições antecipadas, o Governo cede aos interesses mais variados, volta atrás com muita coisa, nomeadamente na Educação. O orçamento para 2010 é pouco ambicioso e os mercados penalizam o país. O PEC, que se viria a revelar ser apenas o primeiro, é apenas pouco melhor que o orçamento. Os mercados voltam a penalizar o país e o Governo entra na clandestinidade, ninguém está lá para defender o rigor nas contas públicas. As agências especializadas, em Abril, baixam drasticamente o rating da República e os investidores desfazem-se da dívida pública nacional com perdas (ou seja, os juros a longo prazo batem recordes). O Governo sabe (espero) que vai demorar anos a reverter a situação e com custos brutais para a população. O silêncio do Governo é total.
No entanto, nesse período de silêncio e de óbvio descalabro, não deixa de assinar contratos para mais uma auto-estrada que custará quase um por cento do PIB, nem se esquecerá de assinar o contrato do TGV Poceirão-Caia. Infelizmente tudo isto depois da quebra dramática no rating, o que acentua o sentimento de que o Governo está "em estado de negação" (a expressão não é minha).
No dia seguinte ao contrato do TGV, é anunciado mais um pacote (o chamado indevidamente PEC-2) pela mão da sr.ª Merkel, mais tarde detalhado e acordado com o PSD. Os mercados parecem melhorar ligeiramente, mas por pouco tempo. Estamos em meados de Maio.
E em pleno Verão as coisas começam mais uma vez a piorar: a despesa pública não parece estar controlada; os bancos, em consequência da baixa do rating nacional, têm dificuldades de financiamento; o crédito para as empresas escasseia e é caro; a dívida pública emitida tem custos elevadíssimos; os spreads batem recordes. O Governo passa, mais uma vez, para a clandestinidade. Num magnífico artigo, José Manuel Fernandes descreveu como o primeiro-ministro apareceu todos os dias nas notícias para inaugurar o Liceu Pedro Nunes ou falar da banda larga, mas manteve um silêncio comprometedor sobre o descalabro que nos batia e bate à porta.
O mundo deixava de acreditar em nós e no nosso Governo, voltava o espectro do FMI com o silêncio absoluto das autoridades sobre aspectos orçamentais. O PSD recusa partilhar responsabilidades ou colaborar com o Governo (ou vice-versa). A possibilidade de uma crise político-governamental, a adicionar à outra, parecia clara. E não foi por falta de alertas, durante todo este período de mais de dois anos houve muitas mensagens públicas de desespero: reavaliar as grandes obras públicas; actuar quanto antes; quanto mais tarde, maiores custos terá. Esse momento tardou, mas chegou.
Chegou ontem e brutalmente, como todos sabemos, o chamado PEC-3. Haveria alternativas? Alternativas havia há dois anos, há um ano, há seis meses, mas cada vez mais duras. O tempo passava e a gangrena alastrava. Espanha, de facto España es diferente, fez o trabalho atempadamente e os mercados deixaram de a apoquentar: subiu muito menos os impostos, os cortes na despesa foram menos dolorosos e os resultados são já visíveis este ano.
Hoje, na actual situação do país, neste momento, dificilmente encontraríamos outras vias. Ou melhor, as outras vias seriam igualmente brutais e dolorosas. O Governo não liderou, apenas seguiu as pressões externas, não agiu, apenas reagiu à situação dos mercados, tanto em Maio como agora em Setembro. E o PSD? O PSD, penso, tem de viabilizar o orçamento que aí vier. Não vejo alternativa para o país. Honra seja feita que Cavaco Silva pareceu até ontem a única pessoa ciente da situação. Apenas Cavaco Silva se mostrava preocupado com as contas públicas, como se a ele coubessem as responsabilidades de elaborar, apresentar e aprovar o Orçamento do Estado. Mais nada poderia fazer, para além do que fez. E fez bem. O problema é que com três PEC"s num ano, sempre anunciados como sendo o último, o definitivo, o que tudo resolveria, fica em todos a dúvida: será? É que, penso, este resolve a questão para 2011 e tapa o buraco de 2010 com o fundo de pensões da PT (espero que o dito fundo seja transferido devidamente capitalizado, veremos). Mas para 2012 a situação poderá voltar a colocar-se, em particular se o crescimento for muito abalado com mais este PEC-3. E pouco depois aparecem as facturas das PPP"s, concessões, etc. Infelizmente o sarilho orçamental veio para ficar. Os culpados são fáceis de reconhecer: quem governou o país, digamos, desde 2001, com graus de responsabilidade crescentes até ao presente. O ponto de não retorno foi em Abril com a queda do rating, pelo menos para muitos anos. Nessa altura confessava que daqui para a frente só nos restava rezar. Um jornal alemão fez deste meu desabafo primeira página: vã glória. O leite estava definitivamente derramado e voltar a pô-lo no copo não é, nem será, tarefa fácil.
Do pacote anunciado há ainda muitas zonas de penumbra. Desde logo, o corte no investimento público inclui os grandes projectos? Avançar com auto-estradas, TGV, ponte sobre o Tejo, aeroporto, implica não haver recursos para tapar um buraco numa estrada secundária, reparar uma ponte, manter um monumento ou fazer um jardim. E estas pequenas obras têm grande impacto no nosso bem-estar e são criadoras de muito emprego. Se fosse líder de um partido, propunha exactamente isso como objectivo nacional: fazer de Portugal um país mais bonito e mais agradável para se viver. Fazer o jardim, requalificar os centros das grandes cidades, manter o património, construir o património cultural do futuro, arranjar as pequenas vias de comunicação, reparar as pontes, medidas que fariam de Portugal um país mais agradável para se viver e visitar. E, acima de tudo, criariam muito emprego, viabilizariam muitas pequenas empresas (com concursos transparentes) e não implicariam a paralisia do país.
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Luís Campos e Cunha
(Professor Universitário)
in Público – 1 de Outubro de 2010