CATURRICES 09
LIGADOS À MÁQUINA - VII
Se a realidade obedecesse à teoria convencional, os problemas com que hoje nos confrontamos tinham remédio santo (gentileza do FMI): desvalorizar a moeda, reequilibrar as contas públicas e esperar que a inflação acabe por roer o peso da dívida excessiva no rendimento real disponível.
Mas não. Os nossos problemas actuais não encaixam exactamente no cenário que a teoria prevê, pelo que será inútil insistir na litania das mezinhas tradicionais. Explico porquê.
Desde logo, porque o instrumento cambial (a taxa de câmbio) já não está nas nossas mãos, mas nas do BCE. Logo, não podemos mais contar com a desvalorização da moeda nacional para:
(1) baixar de supetão os CUT (Custos Unitários do Trabalho);
(2) repor de golpe a competitividade das nossas actividades que ainda geram uns “Euros externos”;
(3) e meter de vez algum bom senso na ilusão de que somos endinheirados.
Depois, porque o sobre-endividamento da nossa desgraça é Dívida Externa (do Estado e da Banca), pelo que a inflação da teoria, um fenómeno exclusivamente doméstico deixá-la-ia intacta. A única inflação que nos poderia valer seria a que se verificasse ao nível da Zona Euro - mas alguém acredita nisso, com a Alemanha ao leme?
Enfim, o reequilíbrio das contas públicas terá de acontecer a partir de uma situação em que uma bolha de crédito bancário empolava as receitas fiscais e, malgrado isso, o deficit orçamental atingia níveis incomportáveis (ou impossíveis de financiar, no que vem dar ao mesmo). Assim, o aperto orçamental terá de ser maior do que aquele que vem nos livros.
Mas não é tudo. Resta ainda o sobre-endividamento externo dos nossos Bancos (sobretudo, no MMIX/mercado monetário interbancário em Euros e, agora, junto do BCE), para o qual a teoria, apanhada de surpresa, não tem remédio “macro” que nos valha. Terapia para isto, de efeitos rápidos, só os prosaicos aumentos (ou entradas) de capital.
E convém pensar, desde já, em aumentos de capital muito, mas mesmo muito substanciais, porque esvaziar a bolha vai dar lugar a crédito malparado em catadupa - que os Capitais Próprios dos Bancos terão de absorver (isto, se não vier alguém com a peregrina ideia de um “bad bank”, para que sejam os contribuintes a pagar também mais esta factura da crise: o crédito malparado).
Assumamos por uma vez: durante mais de dez anos gastámos à tripa forra, por conta do futuro - e o futuro chegou-nos no final de 2009. No ínterim fez história o dito: “Há mais vida para além do deficit”. Claro que há. Mas é só para nos dar uma oportunidade para pagarmos até ao último cêntimo a dívida em que os deficits entretanto se transformaram.
Se fui claro até agora, começa a surgir com nitidez a saída para a crise em que endividamento desregrado face ao exterior nos lançou:
- Reduzir em muito (da ordem dos 16%, como na Letónia) os CUT para, no mínimo, reequilibrar a BTC – mas o que seria desejável era começar a obter superavits para se ir amortizando alguma coisinha da Dívida Externa (só que isto não se consegue da noite para o dia);
- Encontrar o ponto de equilíbrio entre o desendividamento do Estado e a estabilidade financeira do sistema bancário (caminho do qual pouco se conhece e que terá de ser percorrido às apalpadelas);
- Satisfazer internamente todo e qualquer novo acréscimo da Dívida Pública;
- Ir amortizando aos poucos parte da Dívida Pública Externa (sem com isso agravar o desequilíbrio da tesouraria externa dos nossos Bancos, coisa complicada), seja através de superavits orçamentais, seja através da substituição de Dívida Pública Externa por Dívida Pública Interna;
- Convidar (como Don Corleone convidava) os nossos principais Bancos a procederem, sem demora, a aumentos de capital.
Como se vê, descrever a saída para a crise nem sequer é difícil – o próprio diagnóstico nos indica por onde ir. Concretizá-la é outra coisa. Exige ideias claras, capacidade técnica, coragem política e liderança.
A medida mais urgente é, sem sombra de dúvida, travar o endividamento externo do Estado. E isso é possível:
- Desenvolvendo instrumentos orientados especificamente para a Dívida Pública Interna (e, por favor, não me falem nos Certificados do Tesouro);
- Fazendo coincidir a taxa de juro das novas emissões de Dívida Pública Interna com a taxa de juro de equilíbrio de longo prazo (à volta dos 4%-5%);
- Organizando um mercado secundário digno desse nome para a Dívida Pública Interna, de modo a conferir-lhe suficiente liquidez;
- Como último recurso (que eu não vejo tão distante assim), lançando “empréstimos patrióticos” de subscrição obrigatória em função dos rendimentos individuais disponíveis, sejam quais forem origem e natureza.
Para estimular o aforro por cá (e contribuir para a conversão da Dívida Pública Externa em Dívida Pública Interna), a cooperação dos Bancos é indispensável: ou repõem de moto próprio a atractividade dos depósitos bancários - ou terão de ser convencidos a fazê-lo, com a introdução de um imposto compensatório (isto é, com taxa variável, de tal modo que o custo final para o Banco Tomador coincida com a taxa de juro de equilíbrio de longo prazo) sobre os fundos captados no mercado interbancário e nos mercados financeiros (aqui, se por prazo igual ou inferior a 2 anos).
Estou em crer que a conjugação de condições atractivas na Dívida Pública Interna com a liquidez proporcionada por um mercado secundário bem organizado acordará, de vez, os nossos Bancos para a importância de gerirem com mais cuidado as suas Bases de Depósitos – e para as virtudes da concorrência. O aforro agradecerá, reconhecido.
É provável que estas duas medidas sejam mais eficazes no reequilíbrio da BTC (por via da redução das importações de bens de consumo e de serviços) do que na eliminação (e digo eliminação, não redução) dos deficits orçamentais. E que a redução de importações contribua ainda mais para a queda das receitas fiscais. Por isso, não há alternativa ao corte das despesas – a começar pelos gastos com as chefias (é aqui, e não no número de funcionários públicos, como é papagueado insistentemente, que está a raiz do mal).
Na vida real, crise rima com insolvências. Por cá, muitas empresas vão cair insolventes e muitos devedores individuais não vão poder pagar (mesmo que vivam 100 anos mais). Não é preciso ser bruxo para prever o rombo que o crédito malparado vai fazer nos Capitais Próprios dos Bancos (aliás, já começou a fazer - e ainda a procissão vai no adro)
Por isso, os Bancos têm de estar convenientemente preparados para os dias difíceis que se aproximam a passos largos – vindos, agora, pelo lado do Activo (as dificuldades de financiamento, essas, atingem o Passivo, como se sabe). O que é dizer, têm de dispor de programas de recapitalização para os próximos 5 anos – credíveis e que entrem já em linha de conta com o surto de crédito malparado que aí vem (melhor, que já cá está).
Se eles não conseguirem recapitalizar-se, teremos nos braços, além das 3 crises que já hoje nos atormentam (a crise de Dívida Externa, a crise de Dívida Pública e a crise orçamental) uma crise bancária –e, então sim, não poderemos dispensar o aconchego do FMI e do Fundo Europeu de Estabilização.
Se um tal momento chegar, esses empréstimos de resgate devem ser encaminhados, preferencialmente, para a recapitalização dos nossos Bancos. Com a vantagem adicional de ser possível reciclar algum desse dinheiro para converter Dívida Pública Externa em Dívida Pública Interna (através de uma sequência de operações que não cabe aqui descrever).
Restam as medidas estruturais para corrigir um Estado disfuncional.
(cont.)
A.PALHINHA MACHADO