CATURRICES 08
LIGADOS À MÁQUINA - VI
Já desde 2002 que era evidente a estratégia dos Bancos portugueses:
1º) Endividar-se por atacado e a curto prazo nos mercados interbancários europeus (MMIX; onde não eram tantos assim os Bancos que lhes davam troco);
2º) Lutar por quota de mercado cá dentro (pela via da facilidade, obviamente: crédito pessoal para aquisição de casa própria, para consumo e para extravagâncias; crédito ao sector público para mais consumo e mais extravagâncias);
3º) Aproveitar todas as oportunidades para fazer, lá fora, umas quantas operações de titularização que atenuassem o mismatch (isto é, o desequilíbrio no tempo entre pagamentos certos e cobranças incertas) em que viviam e dessem algum alívio ao sufoco do roll over (a necessidade de renovar, renovar sempre as dívidas no MMIX).
Quando a quota de mercado é, para accionistas, analistas e tutti quanti, o critério supremo da excelência de um Banco - o modo como ele se endivida, o nível do seu endividamento e o risco a que está exposto são minudências a que ninguém liga. E, por cá, ninguém ligava.
Tudo começou quando ficou assente que Portugal seria um dos Estados fundadores da União Monetária. A partir desse instante, desaparecido o cheiro a risco cambial, que até então afugentara os investidores estrangeiros, duas vontades uniram-se com entusiasmo: (1) a de emprestar, protagonizada por alguns Bancos lá de fora;
(2) e a de pedir emprestado, que agitava os nossos Bancos.
Lá fora, no MMIX, a liquidez era mais que muita, e os juros baixos. Cá dentro, vivia-se um longo período de seca e os juros eram puxadotes. Daí, o entusiasmo:
- Os Bancos lá de fora passavam a escoar mais alguma liquidez com melhor retorno e sem terem de afectar Capitais Próprios a estas novas oportunidades de negócio (singularidades do Acordo de Basileia de 1988);
- Os nossos Bancos entravam numa época de afluência como nunca tinham conhecido
- liquidez, praticamente a que quisessem, e margens de intermediação (ou seja, a diferença entre os juros que praticavam e os juros que tinham de pagar) de fazer inveja (recordo-me bem do que, por esses dias, os Bancos estrangeiros comentavam sobre o “paraíso português” – aliás, foi esse o único oásis que por cá se viu).
Para os nossos Bancos, esta forma de se financiarem nem sequer era novidade. Desde a 2ª Carta do FMI (1983 -85) que já dependiam da liquidez que o BdP cedia com parcimónia, mas sem exigir garantias específicas. No MMIX foram encontrar o mesmo método, mas com volumes incomparavelmente maiores e bem longe de uma ou outra pergunta mais indiscreta que, por desfastio ou birra, o BdP entendesse fazer.
E o Bdp? Ah! Como se orgulhava da facilidade com que os nossos Bancos se financiavam lá fora! “Que não havia quaisquer dificuldades no financiamento externo da economia” era o seu santo e a sua senha, quando olhava de soslaio para os crescentes deficits da BTC.
Escapava-lhe, é certo, que os nossos Bancos, ao privilegiarem o financiamento por grosso (no MMIX e através das operações de titularização), faziam-no em prejuízo da Base de Depósitos, instalavam um cartel de facto que abolia a concorrência (se os principais Bancos se financiavam todos às mesmas taxas, porquê competirem em preço no crédito e nos depósitos; e os restantes, sem Capitais Próprios para aventuras, e demasiado pequenos para terem acesso directo ao MMIX, iam a reboque) - e acabavam aos poucos com os motivos para aforrar. O resultado iria aparecer, como era fatal, sob a forma de deficits crescentes da BTC.
Obviamente, as preocupações “macro” do BdP iam noutro sentido: o desequilíbrio orçamental, o desequilíbrio orçamental é que nos afastava do paraíso que os Bancos estrangeiros (ou porque eram míopes, ou porque queriam mostrar-se simpáticos, vá-se lá saber) diziam avistar por estas bandas.
As quotas de mercado que todos os nossos Bancos perseguiam com denodo davam assim lugar a uma corrida para ver quem conseguia emprestar mais por minuto, mas sem grandes diferenças no custo total para o devedor (a inovação dos nossos Bancos ia toda para arredondar o seu retorno, através de comissões e débitos vários).
Emprestar, emprestavam eles:
(1) de preferência, a quem apetecesse comprar e não tivesse no bolso dinheiro para tanto, nem fizesse grande questão sobre quanto isso lhe custaria;
(2) com algum finca-pé, a quem quisesse produzir para saciar esta febre de compras;
(3) nem pensar, àqueles que empreendessem essa actividade eminentemente arriscada que é produzir para exportar (“E por lá? Também há quem empreste para comprar, assim, a rodos, como cá dentro?” interrogar-se-iam os nossos avisados Bancos).
Não sem razão, reconheço. A grande maioria das empresas portuguesas estava (e continuou a estar) endividada até aos cabelos, pagava (e continuou a pagar) mal aos fornecedores cá dentro (os lá de fora exigem cartas de crédito), exibia (e continuou a exibir) capitais que só existiam na imaginação fértil dos contabilistas – enfim, entrava na era da liquidez abundante e do crédito fácil debilitada por falta de capital e muitas dívidas.
Então, porque não se capitalizaram elas para aproveitar a conjuntura expansionista, desencadeada por uma bolha de crédito bancário em que todos viam virtude? Porque (é aqui que entram os Governos):
(1) entre nós, a fiscalidade premeia o endividamento e penaliza a capitalização;
(2) em vez de exigirem às empresas mais capital, os Governos iam-lhes oferecendo linhas de crédito generosas para elas se endividarem ainda mais (“Que é isso de autonomia financeira?” pensariam os nossos governantes “Nós somos óptimos, a inveja da estranja, e vivemos a crédito também”).
A realidade estava, porém, à vista: desde 1997-98 (e, seguramente, a partir de 2001) que cavalgámos uma bolha de crédito que o MMIX financiava. Uma bolha que encharcava de liquidez a construção civil, as obras públicas, a distribuição e as empresas na órbita do OGE – tudo actividades que não só não geram “Euros externos”, como os absorvem em grande quantidade. Disso se queixava a BTC, mas ninguém lhe dava ouvidos.
Esta bolha de crédito bancário reservava, porém, outras (más) surpresas.
Ao nível da execução orçamental, os Governos não percebiam que o crescimento das receitas fiscais era causado, não tanto pela maior eficiência da máquina fiscal, mas mais pela expansão acelerada do Sector de Bens não Transaccionáveis (SBnT: a construção civil, as obras públicas e a distribuição, entre outros) que representava, de longe, a maior fatia da matéria colectável e onde os nossos Bancos faziam desaguar a maior parte da liquidez que pediam emprestado lá fora.
Dito de outro modo: com o nível que a Despesa Pública tinha atingido, os deficits orçamentais só não eram incomensuravelmente maiores porque o crédito bancário inflacionava as receitas fiscais. Imagine-se para onde irá o deficit orçamental quando a bolha esvaziar (o que terá de acontecer, mais tarde ou mais cedo).
Ao nível “macro”, todos fingíamos não ver que a bolha estava a moldar, de maneira dificilmente reversível, a economia portuguesa:
(1) pelo lado da oferta, centrando-a no SBnT (o tal que não gera “Euros externos”);
(2) pelo lado da procura, criando a ilusão de que todas as intenções de consumo poderiam ser concretizadas.
A teoria “macro” que, na verdade, interessa para o caso reza assim: nas economias “seguidoras” (como a portuguesa) é o SBnT que determina os Custos Unitários do Trabalho (CUT) – e os CUT são um dos factores mais decisivos da competitividade externa.
Entre nós, empolado por uma bolha do crédito bancário com tão frágeis alicerces, o SBnT:
(1) cresceu desmesuradamente;
(2) fez crescer o PIB (para grande contentamento dos analistas);
(3) inflacionou as receitas fiscais (idem);
(4) em dez anos, deu um piparote de 30% aos CUT - enquanto na Alemanha caíam cerca de 15% (isto passou-lhes ao lado);
(5) e deu cabo da BTC (que consideravam perfeitamente financiável ad aeternum).
Perguntam, tantos de nós, como foi possível que tudo isto acontecesse? Foi assim.
(cont.)
A.PALHINHA MACHADO