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A bem da Nação

OBRIGADO, DR. CUNHAL

 

Álvaro Cunhal.jpg

 

No dia da morte do Dr. Álvaro Cunhal, sinto a obrigação de lhe agradecer o trabalho que ele teve para dar à minha geração as condições utópicas de sobrevivência com que ele sonhou para os trabalhadores portugueses.

 

E do que se tratou?

 

Resumidamente, ele foi decisivo para a consagração de um mês de férias anuais e respectivo subsídio (1), ao contrato vitalício de trabalho, à vulgarização e imperiosidade da Segurança Social (2), à gratuitidade do ensino e dos cuidados de saúde. E só me refiro a estas questões porque se trata daquelas que teoricamente perduraram até à actualidade; hoje, data da sua morte, calo as guerras que ele há muito já tinha perdido.

 

Pertencendo eu à geração que concluiu o Serviço Militar em 1973 e começou a trabalhar pouco antes da Revolução, fui aos poucos usufruindo daquelas “conquistas revolucionárias” até que há pouco antecipei a reforma com todas as mordomias consignadas na lei. Por isso, eu digo: “Obrigado, Dr. Cunhal”.

 

Sempre estive politicamente do lado contrário ao do Dr. Cunhal e seus apoiantes, tanto por razões doutrinárias como pragmáticas mas isso não obsta a que lhe agradeça a utopia que ele me proporcionou.

 

Não beneficiei nem um avo a mais do que aquilo que a lei consignava mas, convenhamos, não tendo sido eu a fazer essa mesma lei, nunca abdiquei das benesses que ela me facultou em cada momento pois nada me pesava na consciência por alguma vez ter legislado em proveito próprio.

 

Aliás, sempre considerei que Portugal não tinha – e continua a não ter –uma Economia suficientemente robusta para poder arcar com a vulgarização de tais benesses sociais e chego mesmo ao ponto de discordar totalmente com os contratos colectivos de trabalho, com a rigidez funcional consignada na maior parte desses “acordos”, com a ilegalidade do “lock-out”, com a inoperância do apoio judiciário à entidade patronal, com o automatismo da actualização salarial por conta dos ganhos de produtividade e da erosão monetária (vulgo, inflação). Sempre que pude, negociei individualmente as minhas remunerações; sempre que pude, mantive-me do lado patronal; sempre defendi a manutenção da viabilidade das empresas tentando que ninguém esticasse a corda a ponto dela poder rebentar; sempre pensei que mais vale um emprego modesto do que um desemprego aviltante; sempre pensei que quem tudo quer, tudo perde.

 

Nunca pensei que o interesse dos trabalhadores se opusesse ao dos empresários uma vez que sem estes, não há empregos; sempre pensei que os empresários devem defender os interesses dos trabalhadores pois é destes que o mercado se forma e sem mercado não há negócios; sempre pensei que sem negócios não há lucros e sem lucros não há acumulação de riqueza; não havendo riqueza, nada haverá que distribuir e se nada houver para distribuir, tudo será miséria.

 

Foi isso que o derrube do Muro de Berlim trouxe à evidência mostrando a realidade de que, afinal, o “fabuloso” parque industrial comunista não passava de um autêntico monte de sucata, que as grandes conquistas socialistas de nada valiam perante o bem-estar dos “explorados” ocidentais, que qualquer ser humano prefere conduzir um “BMW” do que um “Trabant”, que a ecologia nasceu no Leste para impedir o desenvolvimento da nuclearização do Ocidente e que, afinal, “em casa de ferreiro, espeto de pau” pois no Leste a energia nuclear estagnara num perigoso primarismo enquanto no Ocidente não tivemos tempo para ficarmos quietos à sombra de propaganda política mal engendrada.

 

Por tanta falta global de tacto, então eu digo: “Obrigado, Dr. Cunhal.”

 

Sempre pensei que todos os homens nascem iguais e por isso mesmo não reconheço a ninguém a posse da unção que o destine ao comando dos não ungidos. E penso o mesmo na escala colectiva: não concebo que qualquer estrato social tenha o direito de se sobrepor aos demais. Não aceito que os “nobres” mandem no povo e por isso sou republicano; não aceito que os proletários se outorguem direitos especiais e por isso sou anti-comunista. Mas se eu tenho estas convicções profundas e nunca me deixei iludir por discursos que utilizavam palavras tão bonitas como “«a defesa das mais amplas liberdades»”, se referiam “à «justa luta dos trabalhadores»”, preconizavam “uma «sociedade verdadeiramente democrática»” porque significavam exactamente o contrário do que a cassete dizia, então eu tinha era medo de que a Portugal chegasse um Enrico Berlinguer, um Santiago Carrillo ou qualquer outro euro-comunista de falinhas mansas que enganasse o eleitorado e o levasse a votar significativamente na doutrina soviética. O Dr. Cunhal nunca teve essas falinhas mansas, nunca enganou ninguém, os eleitores votaram sempre e massivamente (3) a favor da democracia ocidental e, portanto, directa ou indirectamente, contra ele. Por isso também, eu digo: “Obrigado, Dr. Cunhal.”

 

Mas agora estamos na “aldeia global” e já começamos a sentir algumas novas facetas que alteram profundamente o cenário que o Dr. Cunhal nos legou.

 

As “conquistas revolucionárias” são mesmo reversíveis porque a mão-de-obra nos países do leste europeu ex-comunista é muito mais barata do que na Europa ocidental e a deslocalização da produção começou porque os empreendedores perderam a paciência para aturar exigências sindicais e a fugir para os novos ex-paraísos, hoje autênticos caça-níqueis oferecendo condições especialmente atractivas de estabelecimento ao investimento directo estrangeiro, nomeadamente pela brandura dessa mão-de-obra barata habituada a uma disciplina laboral que só os 70 anos de ditadura proletária podem justificar. Agora está tudo a ser despedido porque se conclui que, afinal, se vivia acima das condições internacionais homólogas de valor acrescentado ou até de produtividade.

 

Pena foi que no início da revolução o Dr. Cunhal tivesse ditado que o ensino tecnológico era reaccionário, que devia ser extinto e que todos tinham que ter as mesmas oportunidades de acesso ao ensino superior. Deixámos de ter quadros médios devidamente habilitados e as empresas não passaram por isso a dispor de mais licenciados. Também por isso, os parâmetros nacionais de produtividade e valor acrescentado não cresceram o suficiente para manterem por cá a actividade produtiva. Agora eu digo: “Que pena, Dr. Cunhal”.

 

Mas se a Economia não tem capacidade produtiva, como há-se ter capacidade tributária? Então, como financiar o ensino constitucionalmente gratuito para todos? E como financiar o Sistema Nacional de Saúde que é praticamente gratuito? E como pagar o funcionalismo público que preenche as inúmeras Repartições destinadas a tutelar a mais insignificante actividade desenvolvida no país?

 

E quem estará na disposição de ter que passar o crivo de tantas dessas Repartições tutelares se quiser instalar uma insignificante actividade produtiva? Por tudo isto, eu digo: “Que pena, Dr. Cunhal.

 

O Senhor deixa-nos um cenário de desertificação empresarial, os seus mais acérrimos correligionários estão no Fundo de Desemprego a fazer biscates à boa maneira do capitalismo selvagem, na reforma antecipada ou simplesmente mortos por cansaço de uma vida sem ambição maior do que a de ver o patrão no desespero. Tudo isso em nome da luta de classes. Tudo isso para ficar com o bolo esquecendo que não é a militância política que põe as empresas a funcionar; é o engenho empresarial e esse não se decreta. Por tudo isto, eu digo: que pena, Dr. Cunhal”.

 

A geração que agora está a chegar ao mercado de trabalho receia ir de férias pois na volta pode encontrar o lugar preenchido, trabalha as horas que forem necessárias para a realização da tarefa que lhe está consignada, desconta do seu próprio bolso para a Segurança Social, paga o IVA correspondente ao recibo verde e recebe o que lhe quiserem pagar pois a oferta de mão-de-obra licenciada é relativamente abundante, a indiferenciada nacional e imigrante mais vasta ainda e os novos postos de trabalho escasseiam também por causa do tal excesso de tutela estatal.

 

Como se vê, a minha foi uma geração única nas benesses que não existiam em Portugal antes de 1974 nem haverá daqui para o futuro em qualquer outro lugar do mundo globalizado enquanto a China dita comunista continuar a puxar para baixo os direitos internacionais dos trabalhadores. Por isso digo: “Obrigado, Dr. Cunhal mas foi uma pena não ver que tudo não passava de uma utopia.”

 

Lisboa, 13 de Junho de 2005

 

 

Henrique Salles da Fonseca

(ao nascer do Sol no Estreito de Magalhães, Chile)

 

(1) – O Subsídio de Natal para o funcionalismo público foi introduzido pelo Doutor Marcello Caetano, antes de 1974

(2) – A aplicação aos trabalhadores rurais de um regime “normal” de Segurança Social foi decidida pelo Doutor Marcello Caetano antes de 1974

(3) – “Massivamente”, expressão comunista que pretendia ser sinónima da nossa “maciçamente”

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