CATURRICES 06
LIGADOS À MÁQUINA - IV
Dirão os sabedores: “Comparar a situação portuguesa com a crise asiática de 1997-98 é ir longe de mais. Essa crise foi causada pelo risco cambial excessivo a que os Bancos dos Tigres Asiáticos se expuseram de forma irresponsável. Por cá, risco cambial é coisa que não existe.”
Se o dizem...Mas houve mais, na origem e propagação da crise asiática, do que o sempre suspeito risco cambial. Vejamos o quê.
É certo que os Bancos asiáticos não foram modestos a endividar-se no exterior (sobretudo, junto do MMIX, em moeda forte (USD), para emprestar internamente, umas vezes, em moeda forte (USD, de novo), outras, em moeda fraca (as suas próprias moedas nacionais). [Nota: MMIX é o mercado monetário interbancário internacional, onde os Bancos, entre eles, cedem fundos sob a forma de depósitos, geralmente a curto prazo]
O detonador da crise teria sido, então, o facto de eles pedirem emprestado em moeda forte para emprestarem em moeda fraca – e de os Bancos Centrais desses países começarem a perder Reservas Cambiais a um ritmo alucinante (o tal risco cambial), quando os financiamentos externos deixaram de ser renovados, e tiveram de ser reembolsados por inteiro.
Perante este cenário, a pergunta pertinente só pode ser uma: porque é que os credores estrangeiros, de um momento para o outro, sem avisar, não renovaram os depósitos que mantinham nos Bancos asiáticos, e exigiram o seu dinheiro de volta?
A resposta é simples. Porque se lhes tornou evidente (a eles, que nem sequer eram tantos assim, os grandes Bancos mundiais e pouco mais):
- Que os Bancos asiáticos estavam a financiar as suas carteiras de médio/longo prazo com fundos de muito curto prazo – edifícios largos com alicerces estreitos (mismatch muito acentuado, logo, risco de liquidez agravado);
- Que os Capitais Próprios dos Bancos asiáticos não estavam a acompanhar a expansão acelerada, quase explosiva, dos seus Balanços – e, por isso, os alicerces, além de estreitos, estavam à flor da terra (excessiva alavancagem financeira, outro factor de agravamento do risco de liquidez que os Bancos asiáticos representavam);
- Que a generalidade dos devedores residentes, fosse qual fosse a moeda dos empréstimos, não gerava receitas em moeda forte suficientes para que as tesourarias dos Bancos asiáticos pudessem reembolsar os financiamentos externos sem recorrer ao Banco Central – daí a pressão sobre as Reservas Cambiais, que ia arrastando as moedas nacionais desses países (aqui, sim, risco cambial);
- Que, a desvalorização da moeda nacional tinha por reverso a revalorização dos empréstimos em moeda forte, revalorização que excedia a capacidade de pagamento de muitos devedores, e estes, efectivamente, deixaram de pagar – os edifícios, afinal, eram um amontoado de tijolos apenas besuntados com argamassa (risco de crédito);
- Que se tinham acumulado, mês após mês, nos Balanços dos Bancos asiáticos, riscos financeiros (e não só risco cambial) já incomportáveis – e havia que sair quanto antes.
Com a devida vénia, as semelhanças com os Bancos, nesta última década, não poderiam ser maiores:
- Também eles têm acorrido ao MMIX, não para gerirem melhor as suas tesourarias, mas, mais prosaicamente, para financiarem barato, com fundos tomados por prazos curtos (inferiores a 6 meses, em média), uma larga fatia das suas carteiras (onde predominam os créditos a habitação com prazos bem superiores a 20 anos);
- Também eles se colocaram na posição de depender para o dia a dia de um número reduzido (por cá muito mais reduzido que no Sueste Asiático) de Bancos estrangeiros – o que é sempre propício a fugas apressadas e a comportamentos de pânico;
- Também eles têm convivido despreocupadamente com graus de alavancagem financeira elevados (o que é dizer, fraca capitalização), para poderem apresentar rentabilidades de Capitais Próprios que não os envergonhem;
- Também eles emprestam os fundos tomados lá fora a devedores cá dentro – a grande maioria dos quais não gera, no exercício das suas actividades, posições credoras sobre o exterior (o que só está ao alcance da exportação de bens e serviços);
- Também eles têm recorrido ao Banco Central (no caso, o BCE) para poderem reembolsar as operações no MMIX que deixaram de ser refinanciáveis;
- Também eles não saberiam o que responder se alguém se lembrasse de lhes perguntar como diabo pensavam pagar os fundos que estavam a tomar sem medida no MMIX (uma vez que o Supervisor, por delicadeza, se absteve de fazer, em devido tempo, essa pergunta tão incómoda, a resposta veio dada pelos mercados financeiros, há coisa de uns meses).
Ah! (ouço contra-argumentar) Por cá os Bancos pedem emprestado e emprestam em Euros – e isso faz toda a diferença! Faria, se os Euros fossem todos iguais. Mas não são.
Para se ver que não são, admita-se, por momentos e a bem do exemplo, que o desequilíbrio externo da economia portuguesa está todo concentrado na Zona Euro.
Como a larguíssima maioria dos que exportam para cá não tem conta aberta num Banco de cá, pagar-lhes, só havendo dinheiro lá fora - e esses são os “Euros externos” (os Euros de entidades residentes em Portugal depositados em Bancos no estrangeiro).
Os Euros depositados em Portugal (os “Euros internos”) só estão disponíveis para pagar ao exterior em duas situações:
(1) ou se o credor estrangeiro tiver conta aberta num Banco de cá, e quiser receber aqui o pagamento (isto, enquanto esse dinheiro por cá permanecer);
(2) ou se o Banco de cá dispuser de saldo bastante nas contas que mantém junto dos seus Bancos correspondentes lá fora (o que é dizer, disponibilidades em “Euros externos”).
Está visto que estas subtilezas financeiras escapavam: aos Bancos (que contavam com o BdP e as suas reservas de ouro para neutralizar o risco de liquidez que iam agravando cada vez mais); ao BdP (que via tudo isto como prova provada da vitalidade do sistema bancário); aos sucessivos Governos (encantados com os juros baixos); e a tutti quanti (porque a litania teórica não lhes ensinara outra coisa).
Como estranhar, pois, que o cenário mais provável que temos pela frente seja, justamente, o remake da crise asiática – mas sem os hábitos de trabalho das gentes que por lá vivem?
Das três questões ainda em aberto, duas têm, agora, resposta óbvia:
(1) afinal, a capacidade de endividamento externo dos Bancos tinha limite, todos os Bancos tropeçaram nele - e esse limite caiu para 0, ou quase;
(2) a capacidade de endividamento externo dos Bancos eclipsou-se – e ainda está para ver quanto tempo irá durar a travessia do deserto.
Perante isto, não deixa de ser patético ver banqueiros, de ar compungido, a lamentarem os malefícios da Dívida Pública excessiva e do descontrolo orçamental.
(cont.)
Setembro de 2010