REFLEXÕES SOBRE BOLONHA -2
Adicionalmente, devemos encarar a hipótese de que Bolonha seja em si um absurdo se considerarmos que as sociedades modernas são cada vez mais globais, estão cada vez mais assentes no conhecimento de que emergem a seguir as competências. Bolonha inverteu a lógica do conhecimento e da aprendizagem. A redução de Bolonha a um nível de três anos (a licenciatura) depois mais dois (mestrado) e eventualmente mais três (doutoramento) é caricata e vejamos porquê. Bolonha, inicialmente falava de dois níveis de ensino. Vejamos então um excerto do texto da Convenção de Bolonha:
Adopção de um sistema baseado essencialmente em duas fases principais, a pré-licenciatura e a pós-licenciatura. O acesso à segunda fase deverá requerer a finalização com sucesso dos estudos da primeira, com a duração mínima de 3 anos. O grau atribuído após terminada a primeira fase deverá também ser considerado como sendo um nível de habilitações apropriado para ingressar no mercado de trabalho Europeu. A segunda fase deverá conduzir ao grau de mestre e/ou doutor, como em muitos países Europeus.
Então Bolonha propõe, e o texto é claro: “O grau atribuído após terminado a primeira fase deverá também ser considerado como sendo um nível de habilitações apropriado para ingressar no mercado de trabalho Europeu”. Propõe que, em vez de um ensino em profundidade, com uma base de conhecimentos que permitam com pouco custo a sua renovação ao longo do tempo, ao longo da vida, e que hoje necessariamente deveria ser assim, se faça um ensino com base em formações curtas, em formações profissionais, facilmente desvalorizáveis. No primeiro caso, o do ensino em profundidade, há uma exigência, a de os estudantes que aprendem a saber, aprendam também a rapidamente serem capazes de fazer, e há também uma certeza, a de que o saber teórico tem também uma eficácia na prática. Por outras palavras, não há competências se não houver conhecimento. Conhecer é o dado fundamental para se aprender a fazer, para se adquirirem competências. Bolonha, em vez disso, vem inverter a situação: primeiro, o saber fazer, depois o aprender a saber, a conhecer! O drama é que esta segunda fase é diminuída pela pressão da primeira e depois, num país de fracos recursos, ou não se tenta a segunda ou, quando se tenta, para muitos deles, já é tarde, muito tarde mesmo. Por isso, muitos dos efeitos nefastos de Bolonha são irreversíveis, marcam a geração que os sofre e que com eles foi criada. Bolonha esquece e com ela grande parte dos professores que esse esquema defendem, que o saber, enquanto que abstracto, teórico, é também saber gerador de eficiência, é saber gerador de capacidades para na prática trabalhar com os dados da realidade e de ser capaz de a transformar. Bolonha ignora que não há competências ganhas fora do conhecimento, do saber. Por isso há quem diga que Bolonha não é só a inversão dos planos é também a inversão de funções, uma vez que faz das Universidades apenas apêndices das empresas. Para os críticos de Bolonha, entre os quais me situo, as Universidades têm como missão a de ensinar a aprender, enquanto as empresas têm uma outra função, complementar, que é a de ensinar a fazer. Creio mesmo que agora até há Universidades ou Faculdades que fazem essa função das e para as empresas, relegando nas suas funções o ensino da formação intelectual e técnica de base, das suas licenciaturas. Aqui e de novo, mais uma confusão de papéis: as empresas são insubstituíveis nesta função, a de ensinar a fazer.
Aliás, há dias numa troca de correspondência com Martin Wolf a propósito de um seu artigo, pedi-lhe a demonstração de uma das suas conclusões e a razão era muito simples: não tinha dúvidas quanto ao que ele afirmava, mas queria passar o seu texto aos meus alunos e fazê-lo só tinha sentido se estes fossem capazes de reconstruir, desde a base, o seu raciocínio, o raciocínio do autor. Essa é a função também do professor e, como tinha dúvidas sobre a via que este tinha seguido e quanto à referência bibliográfica utilizada, solicitava que me esclarecesse. Mas isto não tem nada, mas nada a ver com formação profissional, ainda por cima, com as formações curtas agora aplicadas, tem a ver sim, com o sentido de Universidade. De uma outra maneira, tem a ver com a criação de inteligência e essa, que me desculpem os arianos deste país, também se “produz”, desde que dêem às Universidades os meios financeiros porque os meios os humanos, os professores, e “a matéria-prima”, os alunos, para a sua “produção” tudo isto existe mas agora, a degradar-se pela má utilização, pela má definição dos objectivos que são inerentes a Bolonha.
Mas levemos a lógica um pouco mais longe, não é preciso muito: como é possível ter ciclos de mais dois anos e com muita qualidade, também eles curtos em horas de ensino, pois os alunos até já são mestres, se não pode haver ensino de profundidade dado o nível de saída do primeiro ciclo, a licenciatura, e dado o pouco tempo de que se dispõe, menos que antes, quando a base de partida era muito mais sólida em conhecimentos e em maturidade. Questão tanto mais enigmática quando uma regra de ouro preside a todo o ensino: só se ensina, de facto, o que os alunos estão em condições de poder aprender. Por isso, duas perguntas aqui deixo: qual a filtragem na saída no primeiro e no segundo Ciclo, qual a filtragem na entrada para o Ciclo seguinte? Respostas difíceis, porque agora, em diversas Faculdades, as pautas já não são públicas, cada aluno recebe apenas por e-mail a informação da sua nota e apenas da sua, como se o aluno na sua relação com a sua Faculdade não seja membro de um colectivo, em que neste assume particular relevo a sua inserção nas turmas de que fez parte, e que agora, na lógica do neoliberalismo e do individualismo que o caracteriza, deixa de existir e passando a ser proibido que o aluno nesse colectivo se reveja.
É por estas razões que não vejo saída da crise no quadro do modelo que ampliou a crise no ensino em Portugal: o quadro de Bolonha.
Júlio Marques Mota
Docente na Faculdade de Economia
Universidade de Coimbra