CURTINHAS Nº 83
TIQUES DE UMA “JUSTIÇA DE CLASSE” - II
Falar em prestação de contas ao 3º Poder é como recitar os Versículos Satânicos em Meca: os nossos juízes abominam que as tendências (outros diriam, as idiossincrasias) das suas decisões sejam escalpelizadas e trazidas para a luz do dia.
E quando não podem mesmo furtar-se a tal, porque a lei a tanto os obriga, recorrem a uma linguagem cifrada, cujo “verdadeiro sentido” só está ao alcance dos “verdadeiros iniciados”.
Entendamo-nos. Se as sentenças são, no dizer da Lei, públicas, então é de esperar que sejam fundamentadas com clareza e bem sistematizadas, para que o público a que se destinam possa lê-las e compreendê-las sem dificuldade, se nisso tiver interesse.
Qual quê? Quantas vezes se capricha na escrita erudita, palavrosa, em linguagem arrevesada, com remissões para remissões, ao longo de centenas e centenas de páginas, onde há que esgravatar muito para encontrar o fio lógico condutor da decisão proferida – o que nem sempre se consegue, aliás.
Que o 3º Poder me perdoe, mas Lógica e Gramática são fundamentais: Lógica para a clareza do pensamento e para a boa arrumação dos fundamentos; Gramática para a clareza da escrita e para que a fundamentação se perceba. Acontece que, tanto uma como outra parecem andar algo arredias do “caldo cultural da justiça”.
Um outro tique está ligado à “livre apreciação da prova”, regra que é vista como corolário dos princípios da independência e autonomia dos juízes. E estamos agora no contexto do “penal”, posto que no “cível” o juiz é, apenas, o árbitro que decide segundo o mérito dos argumentos esgrimidos pelas partes em litígio, sem investigar.
As provas materiais, pela sua própria natureza, permanecem intactas (quando não são perdidas, destruídas ou inquinadas) desde a fase de investigação até à audiência de discussão e julgamento, valendo o que valerem. O mesmo já não se passa com a prova testemunhal, onde hoje se diz uma coisa para logo se desdizer amanhã, conforme soprarem os ventos.
E lá vem o tique: só os testemunhos prestados na fase de julgamento fazem prova e relevam para formar a convicção do tribunal. Talvez porque legisladores e juízes não põem as mãos no fogo pela autonomia e independência (melhor se diria, a proficiência e a isenção) da investigação.
Temos assim a aberração de testemunhos que o juiz de instrução tem em conta ao deduzir a acusação, logo serem varridos do processo e ignorados na fase de julgamento.
Como nos surpreender, então, com a ligeireza (para não dizer desleixo, incompetência) na investigação de crimes que deixam no terreno escassa prova material? Para quê esforçar-se se, em audiência, o dito será dado por não dito?
Bastaria que o juiz de instrução determinasse quais as provas testemunhais a veicular intactas para julgamento – e, muito provavelmente, a investigação tornar-se-ia bem mais capaz, e os julgamentos menos demorados.
Por fim, o tique da “justiça de classe”. Quem assista, com olhos de ver, a um julgamento no “penal” não deixará de se surpreender com a cenografia: ali, juízes e acusados (os quais, recordo, gozam ainda da presunção de inocência) estão em mundos radicalmente opostos – situação que os juízes não perdem oportunidade para vincar bem vincado.
Num dos resquícios mais evidentes do seu passado senhorial, os juízes são, ali, os “senhores”, o 1º estado; os acusados (ou pronunciados?), esses, são o 3º estado, o “povo ignaro”, mantido afastado mesmo dos seus advogados - apenas “coisas” cujo destino já lhes não pertence. Os juízes, pelo contrário, têm a serena certeza de que, façam o que fizerem, nunca serão “povo”.
Daí a dificuldade que o “caldo cultural da justiça” tem de lidar com os casos em que outros membros do 1º estado se vejam arrastados para a posição de “povo” pronunciado. A cenografia fica baralhada. Não existe mais o Rei que, só ele, tinha o poder de julgar a nobreza. E o impasse (leia-se: “a aguardar melhor prova”) ou a absolvição envergonhada são, as mais das vezes, o resultado final.
Estou ciente de que, na generalidade dos casos, o 3º Poder faz por julgar bem – e julga bem. Mas estou igualmente ciente de que, à primeira oportunidade, estes tiques vêm ao de cima, quer no espírito do legislador, quer na decisão do julgador.
E isto porque o “caldo cultural da justiça” não se libertou, ainda, das suas raízes medievais e as leis programáticas têm levado de vencida os princípios orientadores do Direito.
Enfim, todos fazem por não ver que a “justiça popular” nada mais é que uma forma de “justiça de classe” – apenas com o sinal trocado.
(FIM)
Setembro de 2010
A.P.MACHADO