Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

A bem da Nação

Pescar no prato

 

 

O dia estava um pouco enublado o que não impedia contudo de sentir o mar, ali a nossos pés. A calmaria dominava, interrompida apenas, de quando em quando, por uma leve brisa que nos brindava com o perfume da maresia. Quando o almoço foi servido, os caturras deram-se por amplamente recompensados pela trabalheira de descobrir a tasquinha perdida nas escarpas costeiras da Serra de Sintra - "lá, onde a terra acaba e o mar começa" . Vieram saborear o sargo, uns, e, outros, a dourada pescados por ali perto e encaminhados diretamente do mar para a grelha e desta para o prato. O peixe foi servido com o proverbial acompanhamento de batata a murro regada pelo azeite luso e salada de pimentos, a preceito. Para apoio, o melhor que a baga da Bairrada produz. São caturras crónicos o Tiago peregrino, o Artur general, o Jacinto biólogo, o Otto germânico, o Victor «médio»-empresário, o Elias matemático, o Jorge financeiro e o Celso luso-tropical.

 

À hora de atacar o prato, dizia Tiago : - "Já não leio jornais, não ouço rádio, nem vejo televisão. Está tudo controlado, tudo envenenado. Só leio blogs. Estes, sim, são genuínos."

 

Jorge interrompeu: "Genuínos serão mas não consistentes. Em matéria informativa, a profusão gera a confusão. A profusão atenta contra a coesão do sistema o que torna mais difícil acertar na escolha do caminho".

 

Tiago retorquiu: - "O caminho faz-se caminhando. Eu faço o meu".

 

Celso, colocando-se como seu costume no contraponto, observou: -"Mas só caminhas por onde te deixam caminhar".

 

Artur dava sinais de crescente nervosismo. Não se conteve mais tempo: - "Qual ca-mi-nho?", interrogou, martelando as sílabas. "Estamos sempre na mesma mer-da. Quando pensávamos que tínhamos andádo muito, acabamos por perceber que nem sequer saímos do ponto de partida. A única coisa que os da minha geração fizeram na vida foi descartar opções vindas do passado; rejeitaram as doutrinas ditas «bem estruturadas» e ideologias falaciosas. Isto eles fizeram, mas ninguém conseguiu descobrir novos caminhos. Tinham-nos ensinado que nos devíamos sacrificar pelo grupo - ou nação, como lhe queiram chamar. Um dia percebemos que o grupo não é solidário e os traidores levam a melhor sobre os leais. O grupo não existe - é pura ficção."

 

Tiago, saboreando o Bairrada, cortou: - "Existe a pessoa."

 

Celso ainda murmurou - "E o sistema" - mas não foi ouvido. Elias, embora em luta com uma espinha, suplantou-o com uma tirada impulsiva: - "O indivíduo é excremento; só serve para adubar. Ou integramos um grupo ou nada somos. A verdade está na identidade".

 

Victor, até aí silencioso, explodiu: - "Qual grupo, qual identidade! Os grupos existem para a pancadaria. Quando era miúdo, a minha mãe escondia-me debaixo da saia para que eu não apanhasse alguma cacetada vadia ou um golpe de sabre mais enérgico de um soldado da GNR durante as refregas frequentes lá no Barreiro. O grupo permite ao homem dar largas ao seu instinto selvagem".

 

Jacinto saiu do seu habitual estado letárgico e, com surpreendente entusiasmo, exclamou: "Isso é quântico! Aí está! Segundo a teoria, a partícula ínfima do sistema só sobrevive iludindo as regras do mesmo. A mãe do Victor esconde-o debaixo da saia; furta-o à pancadaria - que era a regra - e ele sobreviveu. A teoria colhe".

 

O sorriso condescendente com que Otto acompanhava a conversa gelou; o seu semblante endureceu. Tomou a palavra e sentenciou - "A Teoria Quântica poderá ser válida na Física mas no domínio das Ciências Humanas não tem aplicação. O sistema dura enquanto serve os interesses dos que dominam. A hierarquia está lá para impor a obediência aos restantes. Só assim, progredimos."

 

Celso pegou na deixa: - "A maneira mais fácil de impor a obediência é converter o cidadão em soldado. Assim dizia Bismarck. O Victor tem razão. O grupo tende para a violência. Tolstoi dedica um capítulo inteiro do «Guerra e Paz» à discussão do porquê Napoleão decidir invadir a Rússia quando tudo poderia obter do Czar sem guerra e ninguém - nem os sargentos - desobedeceram a Napoleão. O escritor rende-se à tese da predestinação e diz: "Reis e Imperadores são escravos da história". Razão curta a de Tolstoi. Napoleão quebrou as pazes, primeiro a de Amiens e depois a de Tilsit porque se deu conta de que se a trégua persistisse ele deixaria de ser obedecido. A guerra, sempre a guerra, porque esta lhe trazia a obediência".

 

Jacinto, encantado com a perspectiva aberta pela sua transposição, nem ouviu o discurso de Celso. Continuou: "Diz a Teoria que as partículas relapsas, ao iludirem a regra do sistema, alteram a polaridade do mesmo e tornam-no inviável. Foi o que aconteceu aqui em Portugal, no tempo da guerra de África. Número crescente de jovens salvaram a pele emigrando. No caso, a saia da mãe foi substituída pela bolsa do pai ou por ajudas do exterior. Assim, retiraram à hierarquia o poder de decisão em matéria tão fundamental como a mobilização; ir ou não ir para a guerra, decidir a vida e a morte. A partícula evadiu-se, a polaridade inverteu-se e o regime ficou ferido de morte ".

 

Tiago reforça: -"Sempre entendi que o Sermão da Montanha teve por objectivo prevenir-nos contra os influentes que manipulam o sistema, (naquele tempo, os fariseus). A polaridade, como Jacinto lhe chama, é perigosa. Cabe ao justo encontrar o seu próprio caminho. Esta verdade revelada há mais de dois mil anos põe-me ao abrigo dos problemas de consciência que a vós preocupam e atrapalham."

 

Jorge fumava e tossia. Por fim, lutando contra o catarro, articulou: "No fundo, vocês estão de acordo". Rah, Rah, nova tosse. Após esta, continuou: - "Fora da sistema social nada existe. Devemos contudo reconhecer que o sistema deve servir a todos e não apenas aos «cartolas»".

 

Jacinto riu-se e comentou. "Esse é o paradoxo: o sistema só sobrevive se esgotar a energia das suas partículas ínfimas; mas, liquidadas estas, o sistema não sobrevive. Terá que ser substituído. O sistema não é portanto uma verdade universal – é mero artifício e transitório.

 

Celso tenta concluir: - "Parece claro que, para manter a coesão social, se impõe equilibrar o sistema ou conceber sistemas mais equilibrados. Com tal finalidade, o blog é útil, muito útil."

 

Elias trocara já o Bairrada pelo escocês de vinte anos mas a observação de Celso obrigou-o a não deixar arrefecer a vaca: - "Estás profundamente enganado. O que mantém a coesão não é o equilíbrio de proveitos mas, sim, a sanidade da doutrina. Os indivíduos que se afastam voltarão quando reconhecerem que a doutrina está certa. Reconhecer o erro dá significado à vida."

 

Celso, com uma sombra de tristeza no olhar, rematou: "Esquece. A vida não tem significado; tem encanto. É tudo".

 

***

 

Por esta altura, o Sol afastara o nevoeiro e a paisagem do mar e da Serra mostrava-nos a sua beleza empolgante. Artur puxou da cigarrilha e mandou vir a sobremesa: - pudim flã. Não havia mais nada. Constatamos, aí e então, que, onde não há escolha, a polaridade do grupo mantém-se.

 

 

Estoril 1 de Setembro de 2010.

 

Luís Soares de Oliveira

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2006
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2005
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2004
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D