Pescar no prato
O dia estava um pouco enublado o que não impedia contudo de sentir o mar, ali a nossos pés. A calmaria dominava, interrompida apenas, de quando em quando, por uma leve brisa que nos brindava com o perfume da maresia. Quando o almoço foi servido, os caturras deram-se por amplamente recompensados pela trabalheira de descobrir a tasquinha perdida nas escarpas costeiras da Serra de Sintra - "lá, onde a terra acaba e o mar começa" . Vieram saborear o sargo, uns, e, outros, a dourada pescados por ali perto e encaminhados diretamente do mar para a grelha e desta para o prato. O peixe foi servido com o proverbial acompanhamento de batata a murro regada pelo azeite luso e salada de pimentos, a preceito. Para apoio, o melhor que a baga da Bairrada produz. São caturras crónicos o Tiago peregrino, o Artur general, o Jacinto biólogo, o Otto germânico, o Victor «médio»-empresário, o Elias matemático, o Jorge financeiro e o Celso luso-tropical.
À hora de atacar o prato, dizia Tiago : - "Já não leio jornais, não ouço rádio, nem vejo televisão. Está tudo controlado, tudo envenenado. Só leio blogs. Estes, sim, são genuínos."
Jorge interrompeu: "Genuínos serão mas não consistentes. Em matéria informativa, a profusão gera a confusão. A profusão atenta contra a coesão do sistema o que torna mais difícil acertar na escolha do caminho".
Tiago retorquiu: - "O caminho faz-se caminhando. Eu faço o meu".
Celso, colocando-se como seu costume no contraponto, observou: -"Mas só caminhas por onde te deixam caminhar".
Artur dava sinais de crescente nervosismo. Não se conteve mais tempo: - "Qual ca-mi-nho?", interrogou, martelando as sílabas. "Estamos sempre na mesma mer-da. Quando pensávamos que tínhamos andádo muito, acabamos por perceber que nem sequer saímos do ponto de partida. A única coisa que os da minha geração fizeram na vida foi descartar opções vindas do passado; rejeitaram as doutrinas ditas «bem estruturadas» e ideologias falaciosas. Isto eles fizeram, mas ninguém conseguiu descobrir novos caminhos. Tinham-nos ensinado que nos devíamos sacrificar pelo grupo - ou nação, como lhe queiram chamar. Um dia percebemos que o grupo não é solidário e os traidores levam a melhor sobre os leais. O grupo não existe - é pura ficção."
Tiago, saboreando o Bairrada, cortou: - "Existe a pessoa."
Celso ainda murmurou - "E o sistema" - mas não foi ouvido. Elias, embora em luta com uma espinha, suplantou-o com uma tirada impulsiva: - "O indivíduo é excremento; só serve para adubar. Ou integramos um grupo ou nada somos. A verdade está na identidade".
Victor, até aí silencioso, explodiu: - "Qual grupo, qual identidade! Os grupos existem para a pancadaria. Quando era miúdo, a minha mãe escondia-me debaixo da saia para que eu não apanhasse alguma cacetada vadia ou um golpe de sabre mais enérgico de um soldado da GNR durante as refregas frequentes lá no Barreiro. O grupo permite ao homem dar largas ao seu instinto selvagem".
Jacinto saiu do seu habitual estado letárgico e, com surpreendente entusiasmo, exclamou: "Isso é quântico! Aí está! Segundo a teoria, a partícula ínfima do sistema só sobrevive iludindo as regras do mesmo. A mãe do Victor esconde-o debaixo da saia; furta-o à pancadaria - que era a regra - e ele sobreviveu. A teoria colhe".
O sorriso condescendente com que Otto acompanhava a conversa gelou; o seu semblante endureceu. Tomou a palavra e sentenciou - "A Teoria Quântica poderá ser válida na Física mas no domínio das Ciências Humanas não tem aplicação. O sistema dura enquanto serve os interesses dos que dominam. A hierarquia está lá para impor a obediência aos restantes. Só assim, progredimos."
Celso pegou na deixa: - "A maneira mais fácil de impor a obediência é converter o cidadão em soldado. Assim dizia Bismarck. O Victor tem razão. O grupo tende para a violência. Tolstoi dedica um capítulo inteiro do «Guerra e Paz» à discussão do porquê Napoleão decidir invadir a Rússia quando tudo poderia obter do Czar sem guerra e ninguém - nem os sargentos - desobedeceram a Napoleão. O escritor rende-se à tese da predestinação e diz: "Reis e Imperadores são escravos da história". Razão curta a de Tolstoi. Napoleão quebrou as pazes, primeiro a de Amiens e depois a de Tilsit porque se deu conta de que se a trégua persistisse ele deixaria de ser obedecido. A guerra, sempre a guerra, porque esta lhe trazia a obediência".
Jacinto, encantado com a perspectiva aberta pela sua transposição, nem ouviu o discurso de Celso. Continuou: "Diz a Teoria que as partículas relapsas, ao iludirem a regra do sistema, alteram a polaridade do mesmo e tornam-no inviável. Foi o que aconteceu aqui em Portugal, no tempo da guerra de África. Número crescente de jovens salvaram a pele emigrando. No caso, a saia da mãe foi substituída pela bolsa do pai ou por ajudas do exterior. Assim, retiraram à hierarquia o poder de decisão em matéria tão fundamental como a mobilização; ir ou não ir para a guerra, decidir a vida e a morte. A partícula evadiu-se, a polaridade inverteu-se e o regime ficou ferido de morte ".
Tiago reforça: -"Sempre entendi que o Sermão da Montanha teve por objectivo prevenir-nos contra os influentes que manipulam o sistema, (naquele tempo, os fariseus). A polaridade, como Jacinto lhe chama, é perigosa. Cabe ao justo encontrar o seu próprio caminho. Esta verdade revelada há mais de dois mil anos põe-me ao abrigo dos problemas de consciência que a vós preocupam e atrapalham."
Jorge fumava e tossia. Por fim, lutando contra o catarro, articulou: "No fundo, vocês estão de acordo". Rah, Rah, nova tosse. Após esta, continuou: - "Fora da sistema social nada existe. Devemos contudo reconhecer que o sistema deve servir a todos e não apenas aos «cartolas»".
Jacinto riu-se e comentou. "Esse é o paradoxo: o sistema só sobrevive se esgotar a energia das suas partículas ínfimas; mas, liquidadas estas, o sistema não sobrevive. Terá que ser substituído. O sistema não é portanto uma verdade universal – é mero artifício e transitório.
Celso tenta concluir: - "Parece claro que, para manter a coesão social, se impõe equilibrar o sistema ou conceber sistemas mais equilibrados. Com tal finalidade, o blog é útil, muito útil."
Elias trocara já o Bairrada pelo escocês de vinte anos mas a observação de Celso obrigou-o a não deixar arrefecer a vaca: - "Estás profundamente enganado. O que mantém a coesão não é o equilíbrio de proveitos mas, sim, a sanidade da doutrina. Os indivíduos que se afastam voltarão quando reconhecerem que a doutrina está certa. Reconhecer o erro dá significado à vida."
Celso, com uma sombra de tristeza no olhar, rematou: "Esquece. A vida não tem significado; tem encanto. É tudo".
***
Por esta altura, o Sol afastara o nevoeiro e a paisagem do mar e da Serra mostrava-nos a sua beleza empolgante. Artur puxou da cigarrilha e mandou vir a sobremesa: - pudim flã. Não havia mais nada. Constatamos, aí e então, que, onde não há escolha, a polaridade do grupo mantém-se.
Estoril 1 de Setembro de 2010.
Luís Soares de Oliveira