FALSIFICAÇÃO DA HISTÓRIA
A tentativa de cortar as raízes da civilização europeia, que tem ocupado alguma intelectualidade nos últimos 250 anos, é um fenómeno único na história humana. Desde o Iluminismo que uma ingénua arrogância luta, em nome do mundo novo, para substituir as tradições cristã, judaica, muçulmana, celta, germânica, greco-romana por uma ficção pseudo-científica que alimenta o corropio de ideologias. Em resultado, empirismo, utilitarismo, positivismo, marxismo, nazismo, existencialismo, pós-modernismo têm-se sucedido, degradando uma elevação cultural que modelou o mundo.
Peça central desse esforço é uma esmagadora falsificação histórica, indispensável na luta contra a tradição. Filósofos, propagandistas, pseudo-especialistas esforçam-se por manipular a verdade do passado, criando mitos oportunos para as suas doutrinas. Distorções dessas não são sustentáveis e foram há muito denunciadas pela historiografia séria. Mas vivemos a fase paradoxal em que, apesar disso, as tolices persistem nas vulgarizações mediáticas.
Exemplo gritante é o das Cruzadas, de que o grande sociólogo Rodney Stark acaba de publicar uma desmistificação. O caso é candente porque, além de servir há décadas para humilhar a Igreja, a ficção é hoje usada no suposto choque de civilizações entre Islão e Ocidente. O livro God's battalions; the case for the crusades (Harper One, New York, 2009), não traz dados novos. Limita-se a compilar resultados da vasta literatura científica que destroem por completo a visão popular vigente.
Os erros são múltiplos. Os inimigos dos cruzados não eram os muçulmanos, mas os turcos, recém-convertidos ao Islamismo e invasores recentes da Terra Santa. Muitos árabes, oprimidos pelos conquistadores, aplaudiram as expedições ocidentais. Assim as Cruzadas não foram um capricho irracional mas nasceram de "séculos de tentativas sangrentas de colonizar o Ocidente e súbitos novos ataques aos peregrinos cristãos e aos lugares santos" (p. 8).
Também a imagem comum de bárbaros ocidentais atacando os sofisticados e tolerantes muçulmanos é falsa. O preconceito anticristão pós-iluminista exaltou os feitos islâmicos e glorificou Saladino desprezando os soldados europeus. Pelo contrário, havendo atrocidades de parte a parte, regra na época, a superior técnica cruzada permitiu, face a enorme desvantagem numérica, manter um reino e rica cultura "que, pelo menos ao longo da costa, durou quase tanto quanto os EUA são uma nação" (p. 245).
É falso ainda que a motivação fosse o ganho, colonização ou conversão à fé cristã. "As Cruzadas não foram organizadas e dirigidas por filhos excedentários, mas pelas cabeças de grandes famílias que estavam perfeitamente conscientes que os custos de ir em cruzada excederiam largamente os muito modestos benefícios expectáveis: a maior parte partiu com imenso custo pessoal, alguns conscientemente arruinando-se para ir." (A finalidade, incompreensível para os materialistas actuais, era espiritual: "Eles sinceramente acreditavam servir nos batalhões de Deus." (p. 248)
As manipulações são muitas mais, servindo os mais variados propósitos. Por exemplo, "as actuais memórias e fúria muçulmanas sobre as Cruzadas são uma criação do século xx." (p. 247)
Este é apenas um tema entre muitos. Apresentando como factos incontroversos os preconceitos mais boçais, historiadores de pacotilha têm-se esforçado por exaltar os seus heróis, denegrindo opositores. Isto leva o público informado a ter do passado uma caricatura grotesca.
Em particular, a Igreja tem sido alvo preferencial da falsificação histórica. Exagerando males, omitindo virtudes, generalizando aberrações, a Igreja é acusada de tudo. Cruzadas, Inquisição, heresias, Papado, Escolástica, mosteiros, relações com a ciência e democracia, como agora a dignidade dos sacerdotes, tudo tem sido infectado por esta magna falsificação. Nem se compreende como entidade tão perversa pôde sobreviver e prosperar. A ponto de muitos cristãos devotos caírem na esparrela, vivendo envergonhados da história da sua fé.
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2010-09-06